I – Ebulição e nascimento
O cinema engravida a mente dos artistas, o consciente recebe as cores, a beleza, o movimento das câmeras, a realidade andando de braços com a ficção, a história fazendo confissões e lendas aos atores, a época, a fogueira acesa e compactada mas fitas de celulose, uma ideia passeando pela cabeça do diretor cinematográfico; as ideias começam como nuvens desenhando fatos e as palavras, é o sol que as pronuncia.
II – John Ford, a vida de todos refletido em seu olhar.
John Ford conseguiu conquistar as companhias produtoras de filmes e o público americano e do mundo. Passou a juventude conduzindo uma carroça de peixes pelas ruas de Portland. Aprendeu a relacionar com o outro, entender o seu desejo, a sua vontade, e a busca interior dentro de cada um. Conseguiu um cargo de divulgador de sapatos em uma loja. A noite era lanterninha de um teatro. Apaixonou-se, mas descobriu que a verdade nunca era dita no palco e, a ausência da verdade causava dor nos seres humanos que, simplesmente, tentavam viver.
Seu irmão morava na Califórnia no ano de 1914, trabalhava no cinema, Ford aprendeu todos os mistérios da nova arte; aos poucos trabalhou em alguns filmes, para necessidade da produção; apareceu também em seriados; no dia a dia do stúdio, entre soluções e dificuldades, dirigiu seu primeiro filme “Furação” em 1917. Isso significa que a sua formação foi prática, transcorreu entre a primeira Grande Guerra, momento de agonia, medo, dificuldade, terror, mudança. Na sua vida, entre as coisas vistas e invisíveis, dirigiu mais de 140 filmes, criou uma escola, um método, a busca do interior das pessoas contidas nos pequenos gestos. Os seus filmes nunca revelam aspectos possivelmente vividos pelos personagens, mas, tendo noção do lado obscuro de cada um, desvendou o útero de uma grande nação e daí os seus Oscars se justificam.
III – Rastro de Ódio
A ideia, os pedaços crus da história estavam nas páginas do livro de Alan Le May. O assunto do livro, aborda um fato ocorrido em 1836, que segundo a história geral e escrita, uma menina branca foi sequestrada pelos índios apaches. Viveu 24 anos com os índios, casando e tendo filhos com o chefe comanche. Nas possibilidades dos acontecimentos, ela foi resgatada por um Texas Ranger (uma agência de aplicação da lei, jurisdição no Texas) embora não quisesse abandonar a tribo.
De posse dos direitos para filmar a obra literária, Ford contratou o roteirista Frank S Nugent, para transferir a linguagem literária para a linguagem cinematográfica, na cabeça de Ford, uma questão martelava e seu consciente; jogar o colonizador na mesma situação de seres insignificantes diante da grandiosidade, da beleza, da majestade da terra.
IV – Cenário
A escola dos cenários condiz com uma das propostas do filme, a utopia que tomou conta da América. Antes de iniciar as filmagens, John Ford e a equipe vasculharam o monumento Valley, sonho azulado dos navajos; um terreno árido de uns 300 quilómetros, espaço preferido pelo sol, os montes de monolíticos, esculturas em forma de mesas de pedras, esculpidas pelo vento, torres enormes, ou seja, um lugar em Deus, depois de muito pensar, colocou o oeste americano. Outro cenário desenhado pelas brisas fortes, resultou num paraíso compartilhado com rochas vermelhas, sonhos que afetaram os dias e suas noites. Por fim o Lone Pine – Alabama Hells, um deserto escarpado e emoldurado por picos coberto de neve, formando a cordilheira Serra Nevada.
V – Os rastros – os buscadores – o ódio
A abertura traz uma imagem que, de alguma forma, amarra o concreto e o abstrato que alimentam a história americana. Os créditos do filme, com os nomes dos idealizadores e elenco, são escritos em uma parede rústica, feita de tijolos brutos, separando o processo de ocupação da terra em dois ângulos opostos, o interior e o exterior, duas sombras que acompanham a casa, a fazenda, a posse do território.
VI – O permanente e o que chega
A abertura do filme, cheirando ao pôr do sol, uma mulher abre a porta de sua casa, formando com o seu gesto, a moldura de um quadro; a pintura se arrasta pela beleza da natureza, e bem no centro surge a imagem de um homem cavalgando o seu cavalo, a solidão domina a sua aproximação. O nome da mulher é Martha, um nome bíblico e, mesmo de longe, reconhece a chegada de Ethan Edwards, seu cunhado. A solidão, como sabemos, demonstra uma questão emocional, um isolamento marcado por conflitos, ansiedade e a presença que desencontra os problemas não resolvidos e selecionados. Solidão é pendências.
VII – Os olhos entre a clareza e a escuridão
A casa, uma tipificação da invasão das terras pelos colonizadores. Ethan entra, a sua atitude com o irmão Aaron, marido de Martha, é muito apática. A saudade, o carinho, um pouco de dor, está no beijo que Ethan dá na testa da cunhada. O interesse pelos sobrinhos, tem a função de identificar quantos anos ficou fora.
Ethan saiu de casa atendendo a precisão do Texas, participou da Guerra da Secessão, a favor dos escravagistas. Lutou na Guerra do México, e permaneceu três anos vivendo uma vida sem explicações precisas e detalhadas. O diretor abre a existência de um tempo, mais ou menos equivalente com o sonho de construção de um novo mundo. Os sobrinhos cresceram, Lucy é uma moça e já está namorando o filho do vizinho, o menino já ajuda o pai nos cuidados com a terra, o gado, as colheitas. Debbie, a caçula, revela o momento da partida de Ethan. Ela olha bem nos olhos do tio e pede-lhe uma medalha como aquela que dera a Lucy. Ele entrega à sobrinha a sua medalha de honra ao mérito que recebera na guerra, por bravura e combate. É um laço, uma transmissão muito próxima a paternidade.
A reunião familiar, coisas do princípio da formação da América, denota a tensão entre Ethan consigo mesmo, com o irmão, com sua história, e a delicadeza com a cunhada Martha. Ford, por outro lado, oculta o motivo como Ethan desenvolveu o que, à primeira vista, parece um ódio, um racismo infinito contra os índios. A sua relação com o sobrinho mestiço não é de isolamento, mas não aceita o parentesco. No entanto, o tio Ethan conhece a língua, a cultura, a crença dos índios comanches. O drama caminha em direção ao confronto entre as raças, a luta entre o dono da terra e os invasores. O conflito não é específico ao filme, mas a história da potência mundial, do povo que gira a roleta do mundo.
VIII – A dor, o porquê, as estratégias
Os índios atacaram uma fazenda próxima levando muitas cabeças de gado. O reverendo entra na casa de Martha, solicita ajuda para buscar as rezes que foram furtadas do vizinho. Ethan se apresenta com o sobrinho mestiço. Cavalgam pela grandiosidade selvagem do Oeste, encontram um comandante morto; Ethan atira nos olhos do cadáver indígena, pois sem os olhos, o espirito ficará vagando pelas planícies, uma crença simples, mas pertence aos comanches. Neste instante, todos percebem que caíram numa emboscada, os comanches queriam, na verdade, casa de Martha e a família.
IX – Na casa de Martha
À noite, a lua, ruídos distanciados da visão. Os gritos, o voo das aves, a inquietude dos filhos, o lampião apagado, janelas fechadas, o esconderijo de Debbie. O ataque indígena, o chefe Cicatriz sai das sombras para tornar-se fisicamente um índio, o antigo dono das terras, diante do olhar assustado de Debbie.
X – O preço da história
A casa em chamas, destruída; os índios mataram seu irmão, Martha, o sobrinho, e sequestraram Lucy e Debbie.
A partir dessa cena de morte e destruição, Ethan e o sobrinho mestiço Martin Pawley, partem em busca das sobrinhas levadas pelo chefe dos comanches, chamado Cicatriz. Os dias não correm porque não tem pressa; a noite traz o seu hálito gelado envolvido em reflexões. Diante do vulto dos dois homens, surge o retrato da América mitificada, os pedaços de terra que formam ou disformam o seu ideal de nação. Na cabeça de Ethan surge a imagem dos pioneiros chegando ao solo da América. Os índios, donos daquele mundo, assustando-se ao sentir uma cultura diferente, modo de vida estranha, a intolerância dos invasores e o ódio saltando no coração do povo invadido.
Nessa mesma busca, Ethan representa um herói excluído do seu grupo, um homem errante na natureza grandiosa e sem fim; a sua busca pela sobrinha é, com toda certeza, a busca de si mesmo. Em seu interior existe um martelo psicológico batendo em duas estacas. Considerando a hipótese de encontrar Debbie e, pelo tempo decorrido, tenha assimilado a cultura indígena, ele assassinará a menina, mesmo sentindo uma chaga se abrir em seu coração. A linearidade do filme entra em confronto com a história da colonização, em momentos cruciais como o olhar de Ethan, ao descobrir o corpo de Lucy em um acampamento indígena e, uma índia jovem usando o vestido azul que fora de sua sobrinha.
XI – Ethan e Cicatriz
As expressões dos rostos do homem branco, do índio, do mestiço, sentados na tenda de Cicatriz, retratam uma época de anos de conflitos entre os brancos invasores e os pele-vermelhas.
O momento fílmico apresenta o passado histórico da nação representado por homens brancos bons e maus e índios maus e bons, uma tentativa de mostrar o início da América do Norte, em seu equilíbrio e desequilíbrio.
Dentro da tenda de Cicatriz existe um pedaço para suas mulheres. Debbie é uma das esposas do grande chefe.
No diálogo entre Cicatriz e Ethan, o índio confessa-lhe que tinha dois filhos, mortos pelo branco. O ataque a família de Ethan, não fora um ataque selvagem, mas de vingança em nome dos filhos perdidos. Cicatriz ordena a Debbie que mostre a estaca com os escalpos tirados dos assassinos brancos. A câmera centraliza o olhar de Debbie que, entre a alegria e a tristeza, reconhece o irmão de criação Martin e o tio Ethan.
A noite escureceu-se mais do que o necessário; os lobos uivam melodias de séculos; Martin entra na tenda de Cicatriz para salvar Debbie. O índio surge na entrada da tenda, o pele vermelha e o mestiço Martin. Por um centésimo de tempo, Martin lembrou que o escalpo de sua mãe estava na coleção de troféus do índio. Martin mata Cicatriz e o passado encontra-se com o presente. Ethan, expondo a sua fúria para fora, escalpeia o índio, e a sua alma reencontra-se com a solidão.
Debbie corre pela areia branca do deserto, fugindo do tio Ethan. Ele a abraça com as batidas do seu coração e, com a voz emocionada diz: “Vamos para casa”.
A família de Martin, os Jorgensen recebem Debbie como filha. A senhora Jorgensen fora professora e, da sua voz, a utopia americana ecoa em direção às planícies: “Algum dia esse país será um bom lugar para se estar. Talvez ele precise dos nossos ossos abaixo da terra antes que esse tempo possa chegar”.
Ford desenha um novo quadro; coloca-o na mesma moldura de uma porta que se fecha, deixando transparecer o personagem Ethan caminhando sobre sua própria solidão e, como uma epopeia, o seu destino de homem errante, permanecerá.
A memória que mora dentro de todos nós, parece uma tela de cinema. No dia 13/09/2022, numa clínica na Suíça, aos 91 anos, Jean-Luc Godar recorreu ao que chamamos de morte assistida. Durante a sua vida, renovou todas as convenções existentes na magia de fazer filmes. A respeito de “Rastro de Ódio” disse: “O final do filme, um dos mais lindos do mundo, lembra o reencontro de Ulisses e Telêmaco, na Odisseia de Homero”. O cineasta conseguiu ver o momento que Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope nasce, e seu pai parte para a guerra. Vendo sua casa atacada, Telêmaco parte em busca do pai e, na longa busca, amadurece entre lutas, medos, encantos e desencantos. O mesmo desejo pela busca, acontece com Ethan, entre os mistérios de uma natureza que transforma o homem e a vida dentro dele.
Receita
Pamonha de milho verde
Ingredientes: 12 espigas de milho-verde; 1 lata de Leite condensado; 4 colheres (sopa) de açúcar; meia xícara (chá) de Leite.
Modo de preparo: Descasque o milho e limpe e lave as espigas e as folhas. Debulhe o milho, cortando os grãos rente ao sabugo. Coloque os grãos no liquidificador e acrescente o Leite condensado, o açúcar e o leite. Bata e reserve. Em uma panela, afervente rapidamente as folhas do milho para amolecerem. Separe as menores e desfie formando tiras estreitas. Segure a folha no sentido do comprimento e faça duas dobras sobrepostas. Dobre ao meio, unindo as extremidades abertas. Segure o pacote pela extremidade e encha-o com o creme de milho, deixando bastante espaço vazio na borda. Feche o pacote, amarrando com a tira reservada. Cozinhe em água fervente, por 30 minutos ou até que a palha amarele e as pamonhas fiquem firmes. Retire da água e escorra. Sirva quente ou fria.
Por Adriana Padoan