O menino Gabriel desceu a Rua dos Arcos em Lisboa, com o seu pião de madeira no bolso; ia até a Praça da Mártir, rodar, girar, jogar, apostar, com outros meninos qual dos piões girariam buscando a maior permanência do rodopio. Carruagens iam e vinham; as senhoras caminhavam pelo mundo das lojas, comentando os acontecimentos do cotidiano, casais separando-se, casais amando-se, homens traindo outros homens e a si mesmos, nos cantos escuros dos becos das ruas estreitas.
No convento, ao que tudo parece, os ocorridos caminhavam normalmente; havia freiras costurando, freiras lendo, freiras sonhando com amores esquecidos no tempo, e, na cozinha conventual, algumas freiras comandadas pela irmã Verônica, criavam novas receitas de doce. Centenas de gemas de ovo boiavam num tonel; a sacaria de trigo amontoada ao lado do fogão, um balcão de madeira, depositário dos potes de essências também estava ali. As freiras anotavam os ingredientes, riam ao fazer as anotações, contavam histórias com gosto de pedras antigas; as mãos batiam gemas; outras misturavam os componentes. Às 3 horas da madrugada modelaram um doce que, depois de degustado, experimentado, recebeu o nome de Beijinho ou Beijo da Freira. O nome coçou o corpo da semântica, pois a pluralidade significativa circundou o pequeno doce: Beijinho pode ser um doce pequeno; Beijinho, doce roubado, gostoso, pode ser erótico; significa, também, declaração de amor, gesto para marcar encontros possíveis e impossíveis.
Ao bater das 4 horas, um gemido arrastou-se pelos corredores do convento. Declarações de amor sufocantes passaram por todos os cantos do mosteiro; gritos ininteligíveis penduraram-se nos tetos e nos lustres.
Os gritos nasceram na cela de uma freira do Algarve que, em delírio absurdo, desfrutava de um prato de prazer proporcionado pelo rei de Portugal. Às 5 horas, rei e freira saborearam vários beijinhos acompanhados de taças de vinho, docinhos nascidos e gerados no próprio convento. O rei comeu o doce e sorriu. A freira suspirou; o rei acabou dormindo, a freira entrou em sua dormência, o Beijinho dormiu e sonhou. Aos poucos esses docinhos conquistaram a corte, a nobreza, os remediados, os pobres, os mendigos alienados do mundo.
Os ciganos, vindos de Sintra, acamparam ao lado do Parque Florestal de Monsanto. Trouxeram histórias, músicas, artesanato, leitura das mãos e das cartas, danças e contação de histórias. Na noite de São Cosme, ao lado da fogueira, tocando violão, o cigano Adriano contou a história da criação do doce Olho de Sogra, enquanto Carla, bailarina, dançava os gestos da feitura do doce, das mãos em afago, das panelas e do fogo. Tudo começou assim, na quentura do século XIX: “como é inevitável na vida, havia uma sogra.
O filho, apaixonado, pediu a sua mãe que ensinasse a sua mulher a fazer o doce Beijinho, sua paixão. A sogra sentia um rancor saliente pela nora. A nora era bonita, educada, leitora de livros, costurava e tocava viola, no entanto, roubara-lhe o filho querido. A sogra, no ímpeto de maldade, fez a nora errar a receita ao misturar ameixa ao doce. A nora, percebendo a manobra da sogra, usou sua inteligência, sua criatividade, colocando pedaços de ameixa por cima do doce para enfeita-lo. O sabor tornou-se indescritível, os componentes misturaram-se, fundiram-se, entregaram-se uns aos outros. O formato elitizou-se, assumindo a semelhança de um olho humano vestindo um smook”.
A cigana, dançando em torno do fogo ria e explicava: “é o olho da mulher que, através do olhar, nada lhe escapa”.
Nessa época, havia um leitor de mente no Bairro do Chiado em Lisboa. Conta-se que esse homem chamou o casal de ciganos Carla e Adriano para explicar-lhes o aspecto psicológico da história: “o nome que a nora deu ao doce, “Olho de Sogra”, representa um grande conflito vivenciado pela humanidade desde o princípio do homem sobre a terra.
Sempre haverá, no mundo, uma mulher que gera um filho, coloca-o na vida, ama-o desesperadamente. Um dia aparece uma mulher jovem, linda e, como uma invasora, rouba-lhe o fruto querido. O olhar, órgão que observa as expressões de sentimentos, capta as emoções, demostra o rosto da felicidade ou da tristeza; é responsável por oitenta por cento da constatação das manifestações externas do universo, nomeia o doce que vocês modularam na voz e na dança mostrando, na alucinação a existência de um grande conflito humano entre mãe, nora e filho”.
Os ciganos ficaram impressionados com o leitor da mente, porém, ele continuou: “na Grécia antiga havia uma deusa fogosa, linda, chamada Afrodite. O povo vinha de longe contemplar a sua beleza. Essa deusa tinha um filho chamado Eros, deus da vida e do amor. Esse deus era lindo, perfeito, e encarregado de distribuir o amor entre os mortais e imortais, por meio de um arco e flecha. Numa pequena cidade, perto de algum lugar vivia uma moça mortal chamada Psique. Era mais bonita que a deusa Afrodite. Era mais simpática, risonha, educada do que Afrodite. A presença de Psique desestabilizou o poder da deusa que, por egoísmo foi invadida pelo medo, inveja, ciúme. Descontrolada, Afrodite ordenou a seu filho Eros que matasse Psique. Eros encontra Psique no Bosque das Flores Finitas. Encanta-se com sua beleza, ao tentar matá-la, fere-se com sua flecha e apaixona-se por ela. Casam-se em segredo. Afrodite descobre o casamento passando a massacrar a nora com maus tratos, humilhações, palavras ofensivas. Eros pede socorro ao deus Zeus que, num gesto divino dá a imortalidade a Psique. Todos os participantes da mitologia Grega estão de certa forma, presenciados no doce Olho de Sogra. Psique significa alma e, ao mesmo tempo, representa a purificação do espírito através do conflito, do sofrimento, arrolados aos desmandos da vida”.
Os ciganos Adriano e Carla agradeceram ao leitor da mente pelos ensinamentos recebidos. A noite banhava-se na lua refletida na superfície do Lago Florido. Os animais da noite cantavam sons vindos das galáxias invisíveis. Os Olhos de Sogra, unidos, bailavam na vitrine da confeitaria Pastisserie des Rêves, piscando notícias do mundo movido pelos sentimentos humanos.
Olho de sogra
Receita
Ingredientes: 200 gramas de coco ralado; 1 gema; 1 colher de sobremesa de essência de baunilha; 1 colher de sopa de margarina sem sal; 1 lata de leite condensado; 300 gramas de ameixas pretas sem caroço; açúcar cristal a gosto.
Modo de fazer: Misture o coco ralado, a gema, a essência de baunilha, a margarina e o leite condensado. Leve ao fogo e continue mexendo até desgrudar do fundo da panela. Deixe descansar por 30 minutos. Faça docinhos no formato de croquetes e cubra com os pedaços de ameixa. Passe no açúcar cristal e disponha em forminhas de papel. Podendo ainda ser passado em uma calda, em ponto de fio, para cristalizá-lo.
Por Adriana Padoan