Ainda estou no sítio do meu amigo cinéfilo, em São Luiz do Paraitinga. O sol ilumina o necessário e a sombra da realidade, escondida pelos troncos das árvores. Os peixes estão no lago, os pássaros amam-se nos seus voos artísticos. A Mantiqueira, esculturas desenhadas e esculpidas no período em que a fé caminhava pela terra, quer me confessar os segredos de sua vida, a vida com índios, com colonizadores, com tropeiros, com senzalas, com o coador de pano chorando o líquido negro, quente, saboroso.
O meu pensamento, porém, retorna ao mundo da Juventude Transviada, vivendo a cicatrizes profundas deixadas pelos soluços das metralhadoras, pelas explosões abafadas saídas da boca dos tanques de guerra, pela mudança da coloração das águas do mar, provocadas pela violência dos encouraçados de alta potência. Pelo silêncio de um dia refletindo em outro dia, e o assovio desafinado descendo do céu, em forma de bomba atômica.
Lentamente, mas amparada pela certeza, entro na casa de Judy, personagem representativa do filme Juventude Transviada. Vejo no espelho da sala, o olhar do pai da jovem, o olhar expele fagulhas simbólicas penetrando no mundo do pai, que não conseguiu acompanhar e entender a sexualidade evaporando-se pela pele da filha, o seu lado escuro do espírito não consegue conter ideias adoçadas com desejos incestuosos, desejos que não foram trabalhados, digeridos, abafados com lucidez, dai, a origem dos conflitos com a filha. Psique triste, doente, insatisfeita, repudiando a ausência da sexualidade ativa na presença atrofiada da mãe.
Da mesma forma que entrei na casa de Judy, ingressei na residência de Jimy, James Dean. Jimy, com a mão na testa, deitado no sofá, repensa a sua vida, buscando decodificar o seu mundo. O pai entra em seu quarto, vestindo o avental babado da mãe. O homem, pai patético, ridículo, submisso à mãe ditadora, fria, dominadora, símbolo da mulher que permanece em casa, na cidade, no país, enquanto os homens ausentaram-se para os campos de batalha, procurando se heroicizar banhados pelo medo, pavor, suor e tremedeira. Jimy precisava de um pai, de um homem de carne e osso, controlando e oferecendo segurança a família. Jimy discute com o pai, com a mãe, com o seu mundo, bate a porta, sacode a alma, vai para escola. Encontra Judy, conhece a gangue da escola comandada pelo jovem Buzz, namorado de Judy. Os dois, no caldo da desconfiança, estranham-se.
Ao término da aula no planetário, após o estudo do Universo, Buzz e Jimy brigam, lutando com canivete nas mãos. A cena é perfeita, foi à primeira filmagem a projetar a violência juvenil no pós-guerra; os movimentos, os golpes, são selvagerias adaptadas da Idade Média, as cuteladas perfuram, mas não matam, desonram o concorrente. Jimy vence a luta dos canivetes, sendo convidado a participar de um racha noturno, e o prêmio seria o direito de liderar o grupo. O racha era realizado com carros roubados pela gangue. O racha ocorria na profundidade da noite. Na largada, os carros envenenados disparam em direção ao penhasco de Millertown. Quem saltasse primeiro, antes do carro tombar no penhasco perdia a corrida, era um covarde.
Jimy aceita o desafio, mas antes quer saber do pai, quer receber uma orientação sobre a violência, a honra, a covardia. O pai não consegue aconselha-lo, apontar alternativas, enfrentar a realidade pragmática implantada pela guerra nas deformidades do ego.
Escurece. O lápis de breu pinta a noite, o céu, as almas. Os jovens estão reunidos na elevação do penhasco de Millertown. Os faróis “desabortam” qualquer hipótese de raciocínio límpido, mas clarearam um caminho até o penhasco; Buzz abre a porta de um carro roubado; Jimy no mesmo gesto abre a porta de outro carro, também roubado. Ligam os motores, o cheiro da morte vindo da explosão atômica permanece no ar; os jovens com as faces parecidas com os mortos na guerra se transformam em flores no alto do penhasco, as mudanças sociais pós-guerra estão na atitude dos pais de Jimy, dos pais de Judy e na ausência dos pais de Platão; e a juventude viva arde no abrasamento do ide, do ego, do superego; os motores são ligados, os pneus cantam envolvidos por um cheiro de borracha queimada, disparam-se na procura da dianteira, a vida agarra os ponteiros dos segundos; Jimy pula do carro, e Buzz, dentro do seu carro, despenca penhasco abaixo. O voo, o carro no ar, a aeronave imprópria no espaço desapropriado, a explosão, a morte.
Os rapazes fogem, Jimy confronta os pais contrários em tudo que os compõem, Jimy sai com sua jaqueta vermelha; Judy, sem a compreensão da família, sem o amor do pai, une-se a Jimy. Ambos entram no carro, invadem uma estrada que os levam a uma casa abandonada. Os enjeitados penetram na casa. O sonho em forma de realidade invade os dois jovens; a proposta psíquica de uma nova geração começa a surgir, imaginam-se um casal que, está ali para alugar a casa. Nesse momento, Platão chega, mais um fugitivo do mundo que fora lacrado pela violência. Platão assume a função de um corretor, que tem como missão apresentar a casa para Judy. Na multiplicidade temática que envolve a juventude rebelde, Platão é invadido por personalidades que foram atrofiadas pela linha do seu tempo. O seus olhares penetram no olhar de Jimy, as palavras partem das pupilas de Platão que, por instantes revelam uma homossexualidade latente; mas, ao mesmo tempo, a imagem de um Jimy que encarna a presença do pai ausente, e Jimy deita-se no colo de Judy, a mulher e mãe, a mulher-mulher, a mulher-desejo; Platão estende o seu corpo no chão deitando-se nos pés do casal.
Nesse momento significando o voo de todos os traumas, indecisões, medos, indefinições, desesperanças, Judy canta uma canção de ninar, uma simples canção que elimina os labirintos psicológicos da juventude, e Platão adormece, e uma das cenas mais lindas produzidas pela história do cinema invade os olhos do público, os corações silenciam-se e o amor engatinha dentro do feto de uma nova geração.
Apresentando o rescaldo da vingança pendurada no cabide de um guarda roupa antigo, dois jovens da gangue de Buzz, entram na mansão abandonada pensando em vingar a morte de seu líder. Há perseguições, diálogos, tiros, morte, e a polícia, do lado de fora, silencia o jovem Platão. Jimy abraça o corpo de Platão. Jimy chora pelo final da tragédia sem causa, sem justificativa, sem conclusão. Jimy ri, agarrado ao corpo do amigo, ao ver que o jovem calçara num dos pés, uma meia azul e, no outro, uma meia vermelha. O vermelho, cor do sangue leva o homem em direção à ação, à determinação, à paixão; o azul, por ser azul, encaminha o ser humano ao mundo harmônico, equilibrado, consciente; as sensações que se embaralharam nos primórdios do século XX.
Na cena final, Jimy e Judy retornam as casas do pai, os carros da polícia encaixam-se em seus roteiros. Um homem alto, só, carregando uma pasta, de costa para câmera, caminha em direção a casa abandonada.
Esse homem era do diretor Nicholas Rey, um homem mais rebelde do que a história da juventude que filmara e dirigira. A sua solidão, no encerramento do filme pode representar o seu momento de busca ou fuga. Ray adorava sentar-se em uma lanchonete consagrada, pedir alguns pratos americanos como Chesecake, Torta de Limão, Red Velvert Cake e, sem ser incomodado, lembrar-se dos vários rostos que tivera na vida, e lembrar-se do amor que o alimentara em cada período.
Receita
Torta de limão
Ingredientes:
Massa: 200 gramas de biscoito de maisena, 150 gramas de margarina, raspas de limão.
Recheio: 1 lata de leite condensado, 1 lata de creme de leite (200 gramas), suco de 4 limões.
Cobertura: 3 ou 4 claras de ovo, 3 colheres de sopa de açúcar, raspas de dois limões para decorar.
Modo de preparo:
Massa: triture os biscoitos de maisena em um liquidificador ou processador. Junte a margarina e a raspa do limão e bata mais um pouco. Despeje a massa em uma forma de fundo removível de 27 centímetros. Com as mãos espalhe a massa no fundo e nas laterais da forma, cobrindo toda área de maneira uniforme. Leve ao forno médio (180 graus) pré-aquecido por aproximadamente 10 minutos.
Recheio: Bata todos os ingredientes no liquidificador, exceto as raspas de limão até obter um creme liso e firme. Recheie a massa, já assada e fria e leve à geladeira por 30 minutos.
Cobertura: bata as claras em neve e acrescente o açúcar. Misture até obter um ponto de suspiro e leve ao forno até dourar.
Desenforme a torta, salpique as raspas de limão e sirva.
Por Adriana Padoan