I – O Ser
Eu tenho vários significados e existo em numerosos lugares do mundo. Um homem que trabalha no cais disse, a um passageiro qualquer, que a minha finalidade é levar às pessoas em direção à fome, ao frio, à desolação, à solidão, ao medo, à impotência.
O jovem poeta, que habita a torre do antigo minarete, referiu-se a mim como um espaço onde as provações, as reflexões, as dúvidas, o amor escapado visita a tristeza no interior dos desolados.
O judeu, dono da Loja de Antiguidades, lembrou que Moisés libertou a sua etnia do Cativeiro do Egito e, por motivos especiais, levou o povo livre a caminhar durante quarenta anos, sobre o meu corpo, meu calor, minhas dunas, em busca de Canaã. Os negociantes de tecidos, alimentos, temperos, pedras preciosas chamam-me de deserto, ou tenda do silêncio, da moradia transitória.
II – O meu encontro com o Cinema
Entrei em contato, na biblioteca de Damasco, com a história de um artista chamado David Lean, nascido na Inglaterra, em 1908. David, não por vontade própria, estudou na Leighton Park School, uma casa de ensino comprometida com a disciplina, o saber, e o domínio de si próprio. Nunca foi um aluno brilhante, possuidor de notas destacáveis, ou de trabalhos representativos. Ele apenas suportou as aulas, o tempo, a finalidade e a pasmaceira. Ao término do curso, resolveu trabalhar com o pai na profissão de contador. Trabalho monótono, cansativo, documentado nas finanças dos outros seres humanos envolvidos com o comércio. Nos poucos momentos de folga, ele entrava na sala de um desgastado cinema local, proprietário de um cheiro próprio, de uma cor meio angustiado, mas apresentava filmes lindos, todos banhados pela vida e regulados pelos sonhos.
Ao completar 19 anos, empregou-se num estúdio de cinema, sem salário fixo. Aprendeu a sentir e dominar a emoção; viu o trabalho dos roteiristas, atores e diretores. Arquivou em sua memória os segredos e os mistérios da chamada sétima arte. Recusou muitas ofertas e convites de trabalho; dentro dele havia um relógio que, pactuado com ele, apontaria o momento certo.
No dia da redenção, observou o voo de uma borboleta; poucas horas depois, colaborou na direção do filme “Nosso barco, nossa alma”, do escritor Noel Coward. Realizou vários roteiros, adaptou inúmeros textos literários para o cinema. O seu coração andou pelos seus dias agitando as paixões que o esperavam nas curvas do universo. Casou-se seis vezes. No final dos anos cinquenta, no balanço de um mundo bem agitado, dirigiu “A Ponte do Rio Kwai”, um trabalho que lhe deu o primeiro Oscar. Em 1962, o planeta dançava músicas estranhas e as luzes refletiam os desejos da Lua; Lean dirigiu “Lawrence da Arábia”, recebendo o seu segundo Oscar. Em 1965, o amor o chama para dirigir “Doutor Gigavo” e novamente foi indicado ao Oscar pelo político que comanda a entrega do prêmio mais cobiçado pelos cineastas. “A Filha de Ryan”, de 1970, não agradou ao público, transformando –se em um fracasso de bilheteria. Em 1983, filmou “Passagem para a Índia”, uma adaptação do fantástico romance de E.M.Forster. Em 1984, um tempo marcado pelas neves destemperadas, recebeu o título de “Cavaleiro do Império Britânico”, e, num grito fora do tempo, faleceu em 1991. O meu encontro com David Lean aconteceu no filme “Lawrence da Arábia”, uma história fotografada em cada poro do meu corpo de deserto; somente em mim, na solidão que carrego ao sopro do vento, poderia acontecer, viver, lutar, um homem como Lawrence.
III – Thomas Edward Lawrence
Quando soube que a história do Coronel Thomas se passava nas dunas da minha existência, saliências do meu ser, procurei saber quem foi e qual o significado dos seus momentos vividos.
Thomas Edward Lawrence nasceu no País de Gales, em 1888, na hora em que o dia se despede dos acontecimentos programados pela energia do infinito. Frequentou várias escolas, sempre buscando conhecer a vivência do homem nesta terra; qual o sentido de sua presença nas contradições elaboradas pela sociedade sem face, identidade, CPF, ou qualquer documento que comprove a sua existência. Estudou arqueologia, história antiga e medieval, escreveu o romance “Os Sete Pilares da Sabedoria”, que suportou a criação do enredo do filme. Em uma noite de sonhos, resolveu ingressar no Exército Britânico. Militar culto, desajeitado, indisciplinado, ligado aos problemas do mundo e do momento. Na vida dos seres humanos havia uma coisa feia, uma Guerra Mundial, um direito de você matar, invadir, destroçar quem você não conhece.
Nesse contexto, o tenente Thomas é designado para atuar junto aos povos do deserto, meu povo, como agente secreto, um observador da situação da guerra no Oriente. Os ataques da Turquia aos agrupamentos árabes.
IV – O Filme
É uma obra-prima do cinema internacional. O orçamento para a realização foi e é o maior de todos os tempos. Os roteiristas Robert Bolt e Michael Wilson atravessaram dezenas de noites ligados por uma ponte imaginária agitando a imaginação, a realidade, a criatividade na adaptação do livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”. As palavras do enredo já nasceram grávidas de personalidade históricas.
David Lean leu o roteiro, foi até o deserto e me conheceu. Viu a força do meu sol, o frio da minha noite, a beleza e as constâncias com que eu troco as minhas roupas – o dourado, o amarelo pálido, o infinito do meu corpo, as dobras das minhas roupas chamadas dunas, o meu vento que é o meu amor e meu prisioneiro, as tempestades de areia, os poços e as suas águas, são meus poros espalhados pelo areal, os oásis, as variações da minha beleza refletidas em milhares de espelhos. Eu sou silêncio e a poesia, romance entre a vida e a morte, eu sou um palco onde o vento canta e dança todos os ritmos de todas as horas. Foi na beirada de um poço, que ele resolveu filmar-me inteiro, eu, deserto, fui o maior personagem do filme. A história desfilou em meu perfil e em minhas mãos.
V – O Histórico
A primeira Guerra Mundial desenhou o cenário dos acontecimentos. O exército turco dominava Aqaba, Damasco, e atacava os acampamentos liderados por Faiçal, uma lenda na desorganização dos bebedouros do deserto.
O Tenente Lawrence penetra na beleza do deserto em busca do Príncipe Faiçal. A sua vestimenta militar contrasta com a beleza dos camelos, demarca as diferenças entre o Ocidente e o Oriente. O rosto do soldado inglês representado pelo ator Peter O’ Toole espelha a possibilidade de se lutar em nome da emoção, um homem dividido entre a Inglaterra e o deserto. A câmera coloca Lawrence como um pontinho caminhando no esplendor da areia, conhece um poço, vê um árabe matar o outro, pagando o preço da sede, e passa a entender os motivos pelos quais uma guerra esmaga com brutalidade, com ignorância, a possibilidade de uma união entre os nômades do deserto.
O herói romântico medieval começou a tomar conta do corpo de Lawrence. A idealização da realidade possível aponta caminhos, o choque entre a existência, a força e a política começa a eliminar o jogo brutal na corporificação dos líderes nômades, seres vivendo pequenas vidas.
A Alemanha aliada à Turquia abre caminho para a Inglaterra apoiar a luta árabe.
O recheio da heroicidade penetra no corpo de Lawrence, a sua calma e os seus desequilíbrios emocionais, a sua figura singular, a sua alma aventureira, os seus sonhos, começam a estabelecer um processo de união entre os beduínos do deserto. A sombra de um exército, desorganizado, começa a nascer. Lawrence parece um ser enviado por Deus, percorrendo as tendas e corrigindo rivalidades entre as tribos árabes.
VI – Aqaba
Do sonho nasce a ação. Lawrence muda as técnicas de combate, passa a destruir pontes, estradas e, ao lado de um exército montado num liquidificador acionado por palavras e coragem, invade Aqaba, cidade estratégica para os turcos. A derrota turca faz de Lawrence uma lenda viva. Jornais do mundo inteiro o chamam de Lawrence da Arábia; ele tira a farda inglesa e veste a roupa que representa a moda e o costume árabes, é como beber um líquido que o redesenha em outra nacionalidade.
Num segundo momento, no mesmo deserto, Lawrence invade Damasco, e o banho de sangue tinge as dunas e o próprio vento.
Após a conquista, a luta e a criação do Conselho Nacional Árabe, Lawrence retorna à Inglaterra. Ele é um herói e uma lenda, mas o destino das vitórias será, daquele momento para o futuro, objeto de negociação entre políticos interesseiros, gananciosos, e tão estúpidos quanto os beduínos do deserto. A história, um olho frio, sabia que a vida do herói deveria ser perpetuada.
Na segunda-feira, dia 13 de maio de 1935, o grande Lawrence senta em sua moto. As cilindradas abriram caminho nas estradas. As árvores passavam voando, as casas corriam nas laterais da estrada; o caminho estava livre. De repente, num sopro de tempo, surgem duas crianças e, para não atropelá-las seu corpo subiu e a morte veio recebe-lo.
VII – O filme de Lawrence da Arábia
O filme Lawrence da Arábia revelou nos os bastidores de uma guerra e, as muitas câmeras dirigidas por David Lean, realizou o grande milagre de colocar dentro dos nossos olhos a poesia do deserto; a música que a areia canta para o vento; a luz que nasce e renasce no coração do sol, o infinito pisado pelos camelos; o medo, a solidão, a grandeza, a insegurança e a esperança, plantadas nos pés das dunas.
Eu pensei em inúmeras receitas; lembrei-me dos pratos saborosos do poder inglês. No entanto, o mundo mágico do deserto apresentou-me centenas de fadas, construtores de castelos na beleza das dunas. E o vento que brinca de levar a areia, sempre adiante do sagrado, soprou-me uma receita árabe feita na cozinha dos mistérios.
Receita
ESFIHA ÁRABE
Massa: 480 g de farinha de trigo; 10 g de Fermento biológico seco; 15 g de Açúcar; 300 ml de Água morna; 60 ml de óleo; 5 g de sal.
PARA POLVILHAR: 60 g de fubá
RECHEIO: 600 g de carne moída; 2 Tomates sem semente; 1 cebola picada; 1/2 limão; 10 salsinhas picadas; 10 g de sal ; 13 ml de Azeite; 6 g de Pimenta síria.
MODO DE PREPARO
MASSA: Coloque em uma tigela metade da farinha de trigo, o açúcar e o fermento biológico e misture bem. Acrescente água morna, o óleo e o sal e mexa bem. Comece a acrescentar o restante da farinha de trigo aos poucos sempre mexendo. Transfira a massa para uma bancada enfarinhada e sove a massa por uns 15 minutos. Deixe a massa bem macia, não fique acrescentando muita farinha de trigo. Pegue a massa e 20 faça bolinhas. Distribua em uma assadeira polvilhada com fubá, deixando um espaço grande entre elas. Cubra com um pano úmido para a massa não ressecar e deixe crescer por cerca de 30 minutos.
RECHEIO: coloque em uma tigela todos os ingredientes e misture muito bem.
Montagem:
ESFIHA ABERTA: Coloque uma bolinha em cima do fubá e abra com a ponta dos dedos deixando as bordas altas. Recheie com a carne e aperte bem para espalhar por toda a esfiha.
ESFIHA FECHADA: Coloque uma bolinha em cima do fubá e achate a massa com a mão aberta, deixando em formato circular. Coloque a carne no centro e aperte um pouco, deixando um espaço nas laterais. Una as laterais no centro até metade da esfiha. E feche no outro sentido. Transfira para uma assadeira untada com óleo e polvilhada com fubá as esfihas. Cubra com o pano úmido e deixe a massa crescer por mais 15 minutos. Leve ao forno preaquecido a 230ºC – 250ºC por cerca de 15 – 25 minutos ou até dourar.
Por Adriana Padoan