O céu estava escuro, as estrelas esconderam-se nas sombras das cortinas emudecidas. A lua obscureceu as águas medrosas do mar. As bruxas passeavam além das copas das grandes árvores. Os pássaros encolheram-se em seus ninhos, as flores das velhas paineiras reentraram no silêncio dos troncos marcados pelo tempo.
Os escritores procuravam histórias onde o amor converteu-se no corpo de um animal. Um dos primeiros nasceu nas costas do mundo, foi escrito sobre a pele que cobre a Terra. Seu nome tornou-se um canto chorado por instrumentos musicais estranhos, antigos, tocados por fadas e bruxas, estamos falando do conto “A Bela e a Fera”. Alguém, vindo do túnel da angustia efetuou tal transformação, por ódio, desejo, vingança. Na psicologia, esse fato costuma ser chamado: de mudança na aparência natural, uma repressão profunda, de ordem sexual, amorosa, ou criada no desejo carcomido pela inveja.
O medo que nasce no coração,
A sensação evitada no espanto,
A ocultação, o tabu, o silêncio,
A fera, do conto, foi vítima,
De uma educação deformadora.
Essa semana, vivendo num país enfeado por doenças, crises, má administração, falaremos do filme “O Feitiço de Áquila”, de 1985, escrito, gerado, como roteiro para cinema e dirigido por Richard Donner, tendo no elenco Rutger Hauer, falecido em 2019, Michele Pfeiffer e outros.
A história se passa na Idade Média, durante o século XII, o mesmo período vivido por São Francisco de Assis.
Na pequena cidade de Áquila vivia um bispo que amava uma mulher chamada Isabeau. Esse homem mesmo pertencente à Igreja, era um ditador, arrogante, maldoso e, nas suas noites, dentro de um castelo feito por pedras do princípio do mundo, ele sonhava com a jovem Isabeau correndo no centro de um jardim florido, colorido, brilhando dentro dos raios de sol. Havia os voos rápidos dos beija-flores, a velocidade dos pássaros amarelos, azuis, e de cores não entendidas pela imaginação. Um dia feito de realidade e transparência o bispo descobriu que a jovem era apaixonada pelo cavalheiro Navarre, o comandante de guarda.
Esse bispo, pensando em ser o dono do mundo convocou as bruxas das redondezas, para enfeitiçar o casal. Elas chegaram antes da meia noite, girando sobre suas vassouras, gritando sons irreconhecíveis, dançando em torno da torre da Igreja. O bispo pediu ajuda às forças negativas que habitam as costas do universo.
Acenderam tochas.
Os morcegos dançaram
Nos buracos das paredes.
Queimaram ervas e flores secas.
Cortaram pedaços do vento.
A maldição lançada pelo bispo e seu cortejo, delirando como muitos teóricos da mente que esmagaram todos os desejos do mundo, distorceram e reprimiram as coisas que eram repugnantes, e transformaram o corpo de Isabeau durante o dia num lindo falcão, o comandante Navarro foi transformado em um lobo negro, durante a noite, impedindo dessa forma que o amor, os sentimentos sexuais pudessem ser realizados e todas as sensações da natureza animalizavam-se.
Um mundo rompeu todos os caminhos da normalidade. Durante o dia, cavalgando seu cavalo negro, o comandante Navarro corria em direção ao horizonte carregando, no braço direito o seu lindo falcão, que na verdade era a sua mulher amada, o feitiço castrara qualquer possibilidade de amar e ser amado, de desejar e ser desejado, transformando sua existência no protetor do seu amor, da sua própria vida.
Ao por do sol, na proximidade da morte do dia, o comandante, lentamente, transformava-se num lobo negro, símbolo da solidão, da noite, da lua, e os seus uivos pareciam canções de desespero atravessando as montanhas que demarcavam o vale.
Ela, Isabeau, vestindo um manto azulado, vivendo sua escuridão de mulher, protegia o lobo negro que varava todos os instantes da negritude, buscando estar ao seu lado. Nada tinha sentido nem significado.
A única possibilidade de quebrar o feitiço, de destruir os traumas da vida bloqueada estava na esperança de que os dois se tocassem, antes da transformação, antes que o animalesco permanecesse destruindo o amor que, em desespero, navegava dentro de um homem e de uma mulher, mas que representavam o sentimento que marcava sem anúncios ou programações a origem da vida.
A surpresa que envolve os mistérios do enredo centraliza-se na pequena figura do menino Phillipe Gaston, ladrãozinho de rua, apelidado de rato, preso nas masmorras do castelo, que consegue fugir pela rede de esgoto, numa noite de escuridão triste e indefinida.
Ele ganha as ruas, foge para proteger a vida, encontrando-se com o comandante Navarro tornando-se seu ajudante e amigo. Desse momento em diante sentimos um pouquinho dos ventos da Espanha e dos delírios de Dom Quixote e seu amigo Sancho.
Juntos eles descobrem que o padre Imperius será uma espécie de luz para o casal. Esse padre que no passado ajudara o bispo na realização do feitiço, sabia que haveria um eclipse, um fenômeno onde um corpo encontra o outro e, nesse dia a noite desapareceria da Terra e os dois amantes poderiam se tocar, ação que destruiria o feitiço que tentou mutilar a vontade de Deus: que o amor seja a realidade de todos os dias.
Usando os conhecimentos das entradas secretas do castelo, oferecidas pelo menino Gaston todos conseguem entrar no castelo. O bispo, paramentado, vê os dois condenados pela maldição se tocando, e os corpos destruindo a animalização da maldade implantada pelo homem que esqueceu que ser homem é saber amar.
Os lábios do casal de amantes
Encontraram-se
Os corpos fundiram-se
A ansiedade devorou-se a si mesmo.
O cheiro
A vida
O desejo
E a flor vermelha que
Move-se dentro de um vaso.
A espada de Navarro,
Lamina que historicia o tempo
Atravessa o corpo do bispo
Afogando-o em sua própria maldade.
Para você, nosso leitor que nos acompanhou numa história de amor vivenciada em plena Idade Média ofereço-lhes umas carolinas que dizem alguns eram feitas na casa de Clara, o espelho de Francisco de Assis:
Havia duas pombinhas brancas,
Brincando no ombro de um homem,
Este homem estava ajoelhado na terra,
Solo sagrado do Monte Subásio.
O homem cantava baixinho
Para as pombinhas, voz suave,
Voz de Francisco de Assis
RECEITA
CAROLINAS – acompanhando o filme O Feitiço de Áquila
Prezado leitor, antes de iniciarmos a receita, olhe para o céu, após esse olhar, coloque em uma panela 350 ml de água e 120 gramas de manteiga, caso ouça um uivo de um lobo, não se assuste, é o lamento de amor do comandante Navarro, lançando a sua declaração de amor. Quando a água e a manteiga começarem a ferver, os olhos de Isabeau soltorão três lágrimas em oferecimento a lua. Neste instante misture 500 gramas de farinha de trigo e mexa sem parar para não empelotar. Tome cuidado, as bruxas do local estão dançando nas montanhas douradas, não se assuste. Quando desgrudar da panela, desligue o fogo e coloque na batedeira. Ir acrescentando os 3 ovos, um a um, até a massa ficar homogenia e pegajosa, não faça barulho para não despertar o bispo que dorme na torre da Igreja pensando maldades. Colocar em um saco de confeiteiro e fazer as bolinhas ou no formato desejado. Colocar no forno a 200°C por cerca de 30 minutos, ou até estarem douradas. Dê uma leve descansada para que o amor de Isabeau aqueça o lobo perdido em seus sonhos. Retorne a receita, e com o bico de confeiteiro recheie as carolinas de doce de leite. Depois passe o chocolate derretido por cima.
Abra a janela.
Conte as estrelas
O sol está nascendo
E o falcão voará com uma carolina no bico
Doce de preferência de Isabeou.
Por Adriana Padoan