I – Princípio
O universo espalhou o seu olhar em duas nuvens que passeavam pelo espaço, brincando alegrias unidas pela existência. Na sombra das nuvens refletidas na terra, o ano de 1889 frequentava todas as esquinas das ruas da Europa. Na cidade de Londres, na madrugada do dia 16 de abril, numa casa simples, nascia uma criança chamada Charles Spencer Chaplin; quatro madrugadas depois, dia 20 do mesmo abril, nascia, na Áustria, uma outra criança chamada Hitler. As nuvens continuaram a divagar ente o azulado pincelado pelo ordenamento dos fados cantados no infinito. As épocas acompanharam os movimentos, desfilando entre as estradas, os caminhos, os acontecimentos, os amores, as paixões e a consciência despertada pela necessidade da subsistência.
II – Um momento, apenas um momento
Os homens, as mulheres, as crianças viviam sobre um transcurso riscado no tecido da lenha misturada com a história. As disputas entre os impérios, os nacionalismos criados em torno das emoções, a disparada em busca de armas, as crises econômicas levaram o mundo a Primeira Guerra Mundial. E o silêncio, o embotamento da ternura e da paz, a crença enfrentando o espanto, a tensão e a saudade aconteceram em forma de sonho. Os vencedores não encontraram justificativas para os seus atos; os derrotados, encolheram-se no reflexo da alma.
Vinte anos depois do primeiro Conflito Mundial, o vapor que envolve as chamas das estações levou a humanidade ao encontro das desigualdades sociais, da perda dos direitos básicos exigidos pela vida, o desemprego passou a frequentar os becos confusos, as leis de exceção nasceram do nada e para o nada, os preconceitos raciais colocaram o rosto contra o vento e, como o início da paralização dos sentimentos, a Segunda Grande Guerra brotou de sua sementeira agoniada. Esses descaminhos entraram na pele das artes e o cinema abriu os seus olhos em direção aos conflitos originados no caldo grosso da incompreensão e da brutalidade. Nesse aqui e agora, a presença de Chaplin representou o renascimento da conscientização fotografada pelas câmeras do cinema, a empatia transformou-se em imagens tatuadas nas películas cinematográficas, levando a poesia a penetrar nos registros históricos.
III – O cinema de Chaplin e cântico do filme “O Grande Ditador”
Charles Chaplin era filho do ator e vocalista Charles Spencer Chaplin. Seus pais se amaram na chegada das chuvas de novembro, em Londres. O palco, as luzes, as cores, a representação, o canto, faziam parte da vida dos dois artistas. O tempo passou na periferia do universo criado pelo casal. No entanto, o dia pensou a sua Noite, a noite reconheceu seu entardecer e, como acontece na mutação da existência, os conflitos chegaram ocupando seus espaços na desintegração dos sentidos. Assim, antes que Chaplin completasse três anos, seus pais se separaram. O futuro cineasta viveu uns tempos com a mãe; pisou no palco aos cinco anos, e foi viver num orfanato. Aos poucos, seguindo o movimento do destino, trabalhou em shows, teatro, circo, casas de espetáculo, até chegar ao cinema. Vivendo e participando da arte cinematográfica, criou um personagem elaborado a partir do seu alter-ego, que conquistaria o mundo. A sua criatura era um vagabundo excluído das estatísticas sociais. Esse andarilho, Carlitos, era um ser humano profundamente sensível, modos refinados, cavalheiro, chapéu-coco, bengala, calças largas e remendadas, casaco apertado, sapatos enormes, um bigodinho plantado no rosto gentil, nada combinando entre si, como a época em que Carlitos saltou da imaginação de Chaplin, ganhando as telas dos cinemas do mundo.
A maioria dos seus filmes pertence a época do cinema mudo, mais de 70 filmes. Em 1927 no dia 06 de outubro, em Nova York, aconteceu a exibição do filme “O Cantor de Jazz”, inaugurando uma nova era cinematográfica, ou seja, o cinema falado.
No entanto, para surpresa do público apaixonado por Chaplin, o seu Carlitos só ganharia voz na década de quarenta, treze anos depois, com o filme “O Grande Ditador”, uma obra que atravessou a linha temporal, apresentando um projeto quase impossível naqueles tempos conturbados, isto é, retratar satiricamente o personagem Adolf Hitler, a ditadura, o partido nazista, os horrores de um tragédia que sublinhou a história da humanidade.
IV – O riso e a realidade
“O grande Ditador” transformou a maneira de transportar uma história para as telas de cinema. O filme explorou um momento explicito da aventura humana sobre a Terra, movendo um tempo singular e, ao mesmo tempo, comprometido com a miséria humana.
O enredo começa durante a Primeira Guerra Mundial; Carlitos é um soldado da fictícia nação da Tamânia tentando sobreviver no campo de batalha. As suas ações, como sempre, desencadeiam confusão, movimentos desordenados, quedas, trombadas, atos que colocam no mesmo plano a tragédia, a dor e o riso. A visualização da guerra preenche a narrativa e o desespero promovido pela luta. Nesse cenário, Carlitos tenta salvar um combatente chamado Schultz; ambos entram em um pequeno avião e desaparecem nas alturas, sobrevoando a violência e a selvageria. Na fuga, coordenada e orientada pela esperança, o avião colide com uma árvore. Com muita dificuldade, Schultz escapa das ferragens, Carlitos em pior estado, passa vinte anos internado num hospital. Ao retornar à Tamânia reassume a sua barbearia, trabalhando ao ritmo expressivo de um Carlitos sem memória e amnésico. A cena que ele faz a barba de um cliente, acompanhando as notas musicais da “Quinta Dança Húngara” de Brahms, entrou para a grandiosidade mitológica da interpretação artística.
Um dia, sem anúncios antecipados, o barbeiro encontra o amor de sua vida, uma moradora de um gueto alemão, chamada Hannah, presença feminina que desperta o seu sorriso, embora seja um sorriso triste e doloroso. Através de Hannah, nome de sua mãe, que o barbeiro começa a entender a situação política do seu país, da sua terra natal.
A desesperança do povo, a busca de um pouco de paz, faz com que a população acredite nos discursos proferidos por Adenoid Hynkel (Hitler), também interpretado por Chaplin, permitindo que suas promessas o levem ao poder.
O zero político que mora dentro de Hynkel leva o país a uma ditadura insana, moldada na infeliz ideia que se deslumbra diante da lenda, que impunha a crença dos destinos da raça ariana, como a dona do genes escolhido para estabelecer a pureza necessária, para dominar os outros povos. Ele persegue os judeus, os ciganos, os homossexuais, os negros. Duas cenas, interpretada por Chaplin, demonstram a loucura que habitava o cérebro doentio de Hitler. Na primeira cena ele brinca com o globo terrestre como se fosse uma bola. Ele a impulsiona para cima, com as mãos, com os pés, com as nádegas, cotovelos, até o globo estourar. Chaplin interpreta um Hitler com as feições de criança que perdeu um brinquedo, mas levou o mundo a uma Segunda Guerra Mundial. A segunda cena, o ditador da nação chamada Bactéria (Itália) e o seu ditador operístico chamado Benzino Napaloni (Benito Mussuline), encontra-se com Hynkel para a realização de um acordo: quem atacaria ou teria a iniciativa de invadir o país de nome Osterlich. Os dois sentam-se em cadeiras de barbeiro colocadas lado a lado. Os dois ditadores e parceiros discutem, berram, gritam, esmurram-se. Hynkel aciona o botão que levanta a cadeira, ficando mais elevado do que Napaloni.
O italiano ergue a cadeira, igualando-se ao ditador alemão; de levantada em levantada, numa luta absurda pelo poder, os dois aproximam-se do teto, despencando-se em seguida. Os dois generais que servem ao ditador, o ministro Guebitsch (Joseph Goebbels) Ministro da Aviação, parece um personagem extraído dos desenhos animados, se movendo sem meta e orientação, seus movimentos são psicopáticos. Herring (Herman Goringy) Ministro da Propaganda, apresenta a Hitler um uniforme a prova de balas. Hitler para testar a invenção, segura um revólver e atira em um homem vestindo o milagroso uniforme; o personagem testado, cai duro no chão. Pouco depois, Herring apresenta ao ditador um paraquedas no formato de um chapéu sanfonado.
O pobre homem, cientista emérito, pula do oitavo andar para testar a descoberta, espatifando-se no chão. Os movimentos do ditador, os seus gestos ao discursar, o seu comando sobre os generais e a guerra, sua loucura tingida sobre a pele; todos esses elementos misturados, fundidos aos movimentos de Carlitos, desencadeiam a maior sátira, ironia, pilheria, zombaria dirigida ao grande ditador (Hitler). Uma tarde sem sol exposto, sem flores abertas, com os beija-flores encolhidos em seus pequeninos ninhos, o ditador Hynkel resolve pescar no lago próximo ao Reichstag, um rio de águas negras.
A vara, a linha, a isca, o mau humor; os peixes resolvem virar o barco. Berrando, molhado, alucinado, aloprado, aluado, o ditador treme o corpo, a raiva e a alma.
Nesse momento, pensando nos acontecimentos que a memória não quis reviver, o barbeiro caminha por uma rua próxima a sede do poder. Os soldados de Hynkel, meio atordoados, confunde o barbeiro com o ditador, levando-o para dentro do palácio para fazer o discurso, previamente anunciado, à nação. O barbeiro, o microfone, as incógnitas correndo em seu cérebro, os neurônios trabalhando-se profeticamente. Silêncio! Estamos no ar! O barbeiro vai falar!
V – O discurso
A humanidade sempre conviveu com a palavra discurso. Ela foi encontrada numa rua do Império Romano, dentro de um cesto. O seu significado primeiro era lidar com um assunto, depois, um barbeiro daquele tempo, deu-lhe o significado de “conversação”.
No filme “O Grande Ditador” a conversação se dá num contexto simbólico como palavra Germânia, representando a Alemanha lá no tempo da Idade Média.
VI – O Barbeiro, Chaplin, Carlitos
O universo cinematográfico encontrou-se em consequência de seu pasmo interior, ao ouvir o discurso final de “O Grande ditador”, ditado pelo barbeiro, pelo Chaplin e Carlitos, numa cena que durou mais de sete minutos. Nunca a arte cinematográfica presenciou tamanha ousadia.
O discurso realmente encanta pela simplicidade, maturidade, profundidade. Vou tentar buscar em algum lugar dentro de mim, a semente da poesia que pode não ter brotada ainda, mas vamos lá. A imagem, o barbeiro, o seu rosto, a fotografia do sofrimento, da desilusão, de ter vivido o tempo em que as vidas estavam na ponta de um fuzil, vamos ouvir juntos os fragmentos, com emoção. As palavras do barbeiro estarão em negrito:
Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros. Como as pétalas de um lírio branco, os passos de Jesus, Gandhi, Madre Teresa de Calcutá. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, palavras que me remetem a Drumond. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurado dentro dela. Essas palavras me transportam a Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Relembro as cartas de Freud, olhando a morte enquanto escrevia.
A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… a união de todos nós. Neste mesmo instante e minha voz chega a milhões de pessoas do mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Meu Deus, nesse fragmento, entro um pouco na casa de Nélida Piñon. Sinto-me no calor de suas palavras, transmitindo coragem e sentimentos árduos e primitivos que se adequam com a evolução do homem.
Não odeies! Só odeiem os que não se fazem amar… os que não sabem fazer amar e os inumanos. […] Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um homem só ou de um grupo de homens, mas dos homens todos! Está em nós que somos o povo. Senti-me na solidão de uma praia, observando a voz das ondas. Os meus pensamentos penetraram em Saramago, Joyce, Cecília Meireles, e o meu coração bateu como o sino de uma igrejinha, na solidão de uma vila de pescadores.
Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. […] Hannah, está me ouvindo? Onde te encontrares levanta os olhos!
Desejo a todos um feliz ano novo, que os seus caminhos estejam desenhados nas pétalas de uma rosa; a rosa nascida no coração de um jardim, feito para os amigos, as mães, os pais, os leitores.
RECEITA
Couve Flor Recheada Gratinada
Ingredientes: 1 couve-flor média; Sal a gosto; 150 g de mussarela em fatias; 150 g de presunto em fatias; 2 colheres (sopa) de maionese; 3 colheres (sopa) de queijo parmesão ralado; Salsa picada.
Modo de preparo: Aqueça o forno a 200ºC. Lave bem a couve-flor e deixe de molho em água com vinagre durante dez minutos. Lave novamente e cozinhe em água e sal (ou tempero a gosto) até ficar macia, tomando o cuidado de não deixar amolecer demais. Escorra e espere esfriar em um refratário redondo. À parte, pegue as fatias de mussarela e fatias de presunto enrolando formando rolinhos e introduza-os entre os buquês da couve-flor. Espalhe a maionese sobre a couve-flor, salpique com o queijo ralado e leve ao forno até que o queijo se derreta (aproximadamente 15 minutos). Retire do forno, salpique a salsa e sirva.
Por Adriana Padoan