I – Fragmento histórico
Franco Zampari conhecia Nápoles em todos os sentidos, geograficamente, religiosamente, a beleza da natureza desenhada por um anjo enfeitiçado pela arte, conhecia todos os teatros, e os choros do cinema nascente. Zampari despediu-se do céu, da igrejinha, da música, das coxias; abraçou Nápoles para apertar os laços de origem.
Entrou no navio Aventureiro, abraçou os oceanos, contou as estrelas mais atrevidas, desembarcou no Brasil e, usando cimento, ferro, cálculos precisos, fundou O Teatro Brasileiro de Comédia, construiu os alicerces dos palcos brasileiros. Sonhou durante três dias e fundou a companhia de cinema Vera Cruz, em São Bernardo do Campo.
II – Fragmento histórico
Os brasileiros, o povo, os meus amigos, já ouviram falar de Matarazzo, um imigrante italiano nascido em Castelhabate, província de Salerno. Ele navegou suas dores e aventuras, chegou ao Brasil, viu o que se havia para ser considerado; penetrou pelo sertão como mascate, vendendo necessidades esperadas por longo prazo. Chegou a ter 275 empresas, empregou uns 6 por cento da população de São Paulo. Viera para viver em um país escravocrata, adorava São Luiz que fora rei da França, padre, participou de cruzadas na África, apaixonou-se por uma berbere, segundo Matarazzo 20 por cento dos seus empregados de origem africana receberam, no Brasil, o nome de Luís. Nessa busca e procura investiu na companhia de cinema Vera Cruz.
III – Vera Cruz
A Vera Cruz produziu filmes a partir de 1949. No ano de 1954, ano em que o presidente Getúlio Vargas, às 8 horas da manhã deu um tiro no peito; nessa data a Vera Cruz encerrou a produção de filmes no Brasil, foram mais de 40 filmes.
IV – O drama da fundação
São Paulo atravessara a 2ª Guerra Mundial, a ditadura do Estado Novo, o movimento de efervescência cultural, a fundação de jornais, revistas, dezenas de conferência, inúmeros seminários e exposições, os edifícios nasciam todos os dias engravidando a visão dos paulistas. No final de 1940 nasce o Museu de Arte Moderna, um parto difícil, doloroso, mas real. Em outra casa, em outra família, nasce o Museu de Arte de São Paulo, um rebento bonito, embalado por sonhos repletos de avaliadores e garantias.
V – A fundação
Em São Paulo, daqueles tempos, o interesse pela arte cinematográfica frequentava as escolas, as festas, as padarias, os restaurantes, a paixão de muitos casais encantados. Os chamados cineclubes nasciam de partos prematuros, de cesárias realizadas às pressas. O empresário Zampari colocou a palma das mãos na terra fria, dando início a construção dos Estúdios da Vera Cruz. No espaço de cem mil metros quadrados, num terreno que fora a granja da família Matarazzo. No solo ainda havia sobras do amor do galo Josué pela galinha Moá; o canto das aves ainda vivia na memória dos poros do terreno. Os alicerces desenharam buracos no chão, as paredes escalaram os vácuos, a utopia vestiu-se de branco.
VI – O início do drama
Zampari conhecia teatro, mas desconhecia os processos de gravidez na gestação de um filme. Todos nós nascemos para tomar decisões; umas decisões certas outras mais ou menos, e aquelas que interceptam a nossa vida e destino. Zampari contratou o cineasta Alberto Cavalcante, um conhecedor do cinema inglês; Cavalcante trouxe uma infinidade de técnicos europeus. Os filmes foram nascendo espremidos nas lentes das câmeras; o primeiro a saltar do útero foi “Caiçara”, da mesma forma nasceram “Terra é sempre terra”, “Painel e santuário”, e “O Cangaceiro”. Os prêmios vieram de Cannes e do festival de Veneza, porém, a maior parte dos lucros ficava com a Columbia Pictures, a responsável pela distribuição dos filmes no Brasil e no mundo. A Vera Cruz conheceu o rosto dos prejuízos e das dívidas.
Nesse pedaço de tempo o cômico chamado Amácio Mazzaroppi, de 40 anos, astro da comédia, dramas, teatro musicado nos circos, no rádio, na televisão, tornara-se um grande nome entre o povo sofrido e precisado do direito de sorrir, pelo menos na presença de alguns segundos.
Na Vera Cruz, andando de um lado a outro, cheirando grama e fazendo xixi nas paredes, nos cenários, no sono, vivia o cachorro Duque, ensinado, treinado, acostumado com os ruídos das câmeras.
VII – O ator
O ator, dramaturgo, romancista, diretor, Abílio Pereira de Almeida e o cineasta Ton Payne, escreveram um roteiro especialmente dedicado ao cachorro Duque, pensando nas histórias dos astros felinos do Hollywood. Fizeram um teste com o Mazzaroppi para contracenar com o Duque. No final do teste, refizeram o roteiro e Duque aceitou trabalhar com Mazzaroppi.
VIII – O filme
O nome do roteiro e do filme foi batizado como “Sai da Frente”. A história de um motorista humilde, Isidoro Calepícula, dono de um caminhão dos anos de 1930, chamado Anastácio, que vivia de fazer transporte de carga pelas ruas paulistas.
O ponto de partida do enredo; Isidoro é contratado para levar uma mudança de São Paulo a Santos. O calhambeque não segue em linha reta, roda dançando pelas ruas, conseguindo travar o transito absurdo da época. O nome do filme define a ausência de uma lei de transito que, ao menos, regulamentasse a movimentação dos veículos. Em uma das batidas, Isidoro desce do caminhão e grita com o motorista que bateu na traseira do Anastácio: “quem grita primeiro é quem tem razão”.
Isidoro e a família moram num cortiço de São Paulo, um registro importante, pois o espaço apresenta um quadro social seríssimo, em outras palavras, o reduto dos brasileiros, imigrantes, e negros pobres. O cubículo onde Isidoro reside é o retrato do país, quarto e cozinha não tem divisória, a saúde é precária, a filhinha está com febre e a cachorra Clarinha esperando pelo horário do parto, e o cortiço tem um nome: “Beco do Conforto”.
IX – O trabalho
O início do transporte, o trânsito, o trabalho da polícia. A hierarquia e a inteligência, o cachorro é “Coroné”. A quantidade de documentos guardados na ceroula, peça íntima que se trocava no sábado. A parada para ir ao banheiro, o calhambeque desce a rampa, desaparece; é dirigido pelo Coroné, ou seja, Duque.
O desespero e a entrada nas repartições públicas, o desrespeito com o contribuinte, o pouco caso, a burocracia, a desinformação, funcionários públicos traumatizados, bloqueados, psicóticos.
A parada no bar, a bebida e o desespero, a documentação sobre a dosagem: Três dedos de pinga, 4 dedos de vermute, 3 dedos de conhaque e dois dedos de vinho do porto para adoçar, uma verdadeira bomba comum usada no Estado Novo Getulista. O reencontro do calhambeque, a visão de São Paulo da época, a noiva que foge do casamento e se esconde no meio da mudança; nova batida, a chegada de um candidato a deputado, o discurso, a falta de sentido, um amontoado de frases soltas, as promessas mentirosas.
X – Aonde o enredo se perde
Os autores do enredo, numa tentativa de aproveitar a experiência circense de Mazzaroppi, após o descarregamento de mudança em Santos, Isidoro aceita transportar um circo para São Paulo. Neste ponto, o enredo perde sua sequência lógica; números de mágica, Sansão e Dalila, animais, trapezistas, mulheres bonitas e sedutoras, vivendo em circo decadente; o homem gorila fugindo, Mazzaroppi vestindo-se de mulher para seduzi-lo e enjaulá-lo.
XI – Teatro e cinema
Os circos desse período cruzavam números de mágica, trapézio, palhaços, música, animais e enquetes teatrais. As enquetes bebiam na fonte da comédia, do drama, da tragédia, terminando, quase sempre numa cena de pancadaria, agitada por números de lutadores de luta livre. No “Sai da Frente” há uma briga típica e idêntica às brigas que aconteciam nas arenas do tempo, no entanto, considerando a presença de Abílio Pereira na elaboração do enredo, ele lança mão de Freud ao colocar Isidoro, no momento da briga olhando-se no espelho, e agredindo a si mesmo, a sua imagem fantasticamente desmaia e ele sonha que está dançando um balét clássico, um típico retrato de Narciso.
Ao mesmo tempo, visita o filme Pinóquio de Wall Disney, filmado em 1940, onde o cineasta americano lança mão do conselheiro Grilo Falante, atuando como consciência do boneco de madeira. No caso do “Sai da Frente”, o grilo é substituído pelo anjo da guarda, lutando pela manutenção da família. O dia termina como no Ulisses de James Joyce, fechando a rotina da vida com o retorno ao cortiço. Para terminar este texto precisamos entender a criação da Vera Cruz e a invasão de profissionais técnicos ingleses, que cortaram centenas de cenas do filme “Sai da Frente”, por não entender o português, a comédia e o porquê do riso. Deixaram-nos, no entanto um filme que parece uma colcha de retalhos, onde a descontinuidade da fabulação é muito visível. Por outro lado, o sucesso do filme e o lucro tiraram a Vera Cruz do buraco econômico, possibilitando a abertura da porta e do destino de Mazzaroppi.
Não há uma documentação precisa, mas o cuzcuz já andou nas mesas do Império Romano. Esse prato é aventureiro, numa noite de lua provocadora, invadiu os navios dos portugueses, chegando ao Brasil. O nosso Mazzaroppi já morou na Rua América, em Taubaté, pertinho da CTI, numa casinha cor de sol. Ali, durante o toque do sino, Dona Clara fazia-lhe um cuscuz colorido, prato que marcou a sua vida. Em homenagem ao Mazza, vamos lembrar o sabor dos seus sonhos.
Receita
CUSCUZ DE CAMARÃO
INGREDIENTES: 50g de manteiga extra sem sal, 2 colheres (sopa) de azeite extravirgem de oliva; 2 colheres (sopa) de cebola picada; 2 dentes de alho picados; 1/4 de uma pimenta – dedo-de-moça picada; 1 colher (sopa) de extrato de tomate; 1 colher (café) de urucum; 200ml de caldo de peixe suave; 500ml de farinha de milho em flocos;1 colher (sopa) de farinha de mandioca fina; 6 camarões–rosa cortados em pedaços médios; Sal e pimenta-do-reino branca moída na hora a gosto.
Decoração: 6 camarões-rosa inteiros cozidos no vapor; 50g de ervilhas frescas cozidas no vapor; 3 filés de sardinha portuguesa em lata cortadas ao meio; 2 ovos cozidos cortados ao meio; 100g de palmito pupunha em pedaços , dourados levemente em uma frigideira com duas colheres (sopa) de manteiga; Manteiga para untar a fôrma.
MODO DE PREPARO: Em uma panela, aqueça a manteiga com o azeite de oliva, junte a cebola, o alho, a pimenta e refogue. Acrescente o extrato de tomate, o urucum, o caldo de peixe, as farinhas e vá misturando vigorosamente. Quase no final, incorpore a essa massa os camarões em pedaços, mexa delicadamente e reserve.
DECORAÇÃO: Unte com manteiga uma fôrma (terrine) e coloque cuidadosamente nas paredes e no fundo da fôrma os camarões inteiros, as ervilhas, as sardinhas, os ovos e o palmito. Distribua delicadamente a massa do cuscuz dentro da fôrma e leve-a ao forno médio, preaquecido a 180°C, em banho-maria, por cerca de 20 minutos. Deixe esfriar e desenforme com cuidado.
Por Adriana Padoan