Caminhamos em direção aos mistérios dos dias e das noites. Nessa movimentação pelo mundo fui, numa tarde confessora de mensagens distantes, ao salão do Mestre Afonso, em busca do cuidado estético que, de certa forma, valoriza a nossa vida.
Mestre Afonso é um conhecedor da aspereza política que marca o nosso país, do balanço da sociedade à beira do tudo e do nada, domina a sua arte, e entende a vida.
Conversando sobre os fatos do cotidiano, Afonso sugeriu-me, que escrevesse sobre o cinema brasileiro, chegando inclusive a citar a Atlântida, companhia cinematográfica fundada em 1941, por Moacir Fenelon e José Dantas Burle, surgindo no mercado com o filme “Moleque Tião”. Adorei a ideia e a sugestão.
No sábado, manhã cheia de sol, eu e meu marido fomos ao Mercado Municipal para rever os amigos, fazer compras, sorrir e amar o presente e a história de Taubaté. De repente, sem anúncios ou avisos, avistamos um grande artista, nosso companheiro de luta vendendo a sua arte no chão da feira. É um ser humano simples, um homem do sertão, um galopante da memória, que modela através do barro, retirado dos riachos, pavões azuis, galinhas-de-angola, palhacinhos risonhos e tristes, presépios de São Francisco, ele é gente que habita o mundo da roça, local onde mora a verdadeira origem da antropologia nacional. Esse artista gerador da humanidade aproximou-se de mim e, com o seu olhar que vasculha a verdade pediu-me para escrever sobre um filme de Mazzaropi; o seu pedido tocou-me e com certeza, seria um ato de recusa injustificável não atendê-lo.
I – Jeca Tatu
Para entendermos o filme Jeca Tatu, precisamos compreender alguns dados sobre Monteiro Lobato. No mês de março de 1911, na madrugada Taubateana, morreu o Visconde de Tremembé, avô de Lobato. O escritor recebeu algumas propriedades de herança e, entre elas estava a Fazenda Buquira, outrora destacada produtora de café.
Lobato abandonou a promotoria pública de Areias, leu inúmeras revistas sobre agricultura, produção cafeeira, e assumiu a direção da fazenda. Chegou com novos projetos administrativos modernos sobre o aproveitamento do solo. Esses projetos revolucionários bateram de frente com a qualidade da mão-de-obra existente; trabalhadores lentos, apáticos, inabilitados.
Em 1914, com o mundo em Guerra, relações comerciais truncadas, Monteiro Lobato movido pela raiva, desequilíbrio econômico, queda de produção, publica no jornal O Estado de São Paulo, o artigo “Velha Praga”, onde cria uma espécie de caricatura do caipira, um tipo decadente, sentado sobre o calcanhar, feio, lerdo, preguiçoso, dono de paralisia mental, de pensamentos infelizes, de um desejo de queimar as florestas, produzir desertos. Esse personagem tornar-se-ia a matriz e responsável pelo atraso da agricultura brasileira. O artigo causou polemica, debates, questionamentos.
Um mês depois deste artigo, Lobato retorna ao mesmo jornal, para publicar outro artigo, lançando o texto Urupês. Nesse artigo o escritor nomeia o personagem, produzindo o Jeca Tatu, trabalhado literariamente. Assim, nasce o tipo, a caricatura, o estereótipo do caipira; uma mistura bem feita de comédia, tragédia, drama, crítica, ironia, e uma dose de realismo destemperado.
Em 1924, ano de revolução em São Paulo, Lobato escreve para o laboratório do Biotônico Fontoura, o primeiro gibi, quer dizer, a primeira em quadrinhos do Brasil, “Jeca Tatuzinho”, uma revisão da figura de Jeca Tatu. Lobato não retira nada da personagem, mas reconhece tratar-se de um ser abandonado pela saúde pública, ou melhor, confessa que não sabia que o Jeca era um homem doente.
II – Mazzaropi
Amácio Mazzaropi nasceu em São Paulo, filho de imigrantes italianos e portugueses. Ainda criança, abriu a porta de um cirquinho de lona, de um circo minúsculo, entrou e gostou. Trapezistas, contorcionistas, palhaços, cachorrinhos mágicos, mundo colorido, pobre, sonhado, parido, mas encantador.
Em uma noite desenhada por estrelas bordadas aproximou-se do palco de um teatro, sentiu um espírito adentrar em seu peito; a sabor da Grécia antiga aclimatou-se em seu corpo, tragédia, a comédia, o drama roçaram os cupinzeiros do sertão, os carrinhos de pipoca escondidos na pracinha, e nortearam-lhe os pés, os movimentos, a interpretação. Mazzaropi caminhou nos palcos dos grandes teatros da época. Flanou pelas ondas profundas da Rádio Tupi, onde ergueu um ranchinho bem alegre. Foi um dos que, com a mesma voz, o mesmo olhar, os gestos bem calculados, inaugurou a televisão brasileira. E, depois da chuva dançar a sua chuviscada, apresentou a sua identidade ao cinema, dizendo: “estou aqui, pronto para iniciar as bases do cinema rural; cinema com gosto de colonização, peneira de cruzeta, monjolo, catira, bolo de fubá, araçá, lenha de fogão”.
III – Filme Jeca Tatu
Em primeiro lugar, para abrirmos a conversa, Mazzaropi não filmou o Jeca Tatu publicado no livro Urupês de Monteiro Lobato. Mazzaropi filmou o Jeca Tatuzinho, a ressureição do Jeca, diante do olhar de Lobato; o livreto foi considerado o maior sucesso de propaganda no Brasil. O nascimento do Jeca no cinema e a construção do tipo no universo da imagem, na alma de Mazzaropi, e por Mazzaropi, brotaram de um gibi com tiragem acima de 100 milhões de exemplares.
O filme é de 1959, época significativa para humanidade. O argumento foi pensado por Mazzaropi e o roteiro escrito por Miltom Amaral.
A abertura do filme, realizado na fazenda Sapucáia, de Cícero Silva Prado, apresenta o ideal da colonização agrária no país; plantação, tratores, trabalhadores, limpeza, serras, produção. Essa imagem, no entanto representa o trabalho do novo colonizador do Brasil, o imigrante italiano.
Ao lado do símbolo da presença do imigrante italiano no país; em estado de decadência, de paralisia, improdutividade, casinha de pau-a-pique, localiza-se a terra, um dia, apossada por Jeca Tatu, o resultado da colonização portuguesa e do caso de amor com a índia guarani. O contraste antropológico brasileiro foi muito bem filmado por Mazzaropi.
Jeca planta o necessário para sobreviver, a falta, fato corriqueiro, era comprada fiado na venda, onde era subornado pelo italiano Giovane que, por ninharia, pagava a dívida do Jeca e trocando-a por um pedacinho de sua terra.
A formação artística de Mazzarope, a sua passagem pelo circo, teatro, TV, cria um romance entre sua filha e o filho do seu desafeto, o italiano Giovane. É uma arranhada na história de Romeu e Julieta. O vilão, Vaca Brava, também apaixonado por sua filha, era uma sombra dos faroestes norte-americano.
Jeca perde o seu rancho que é incendiado pelo seu concorrente. Parte em um carro de boi, com a família e “sem nada para carregar”, música e letra do compositor Eupídio dos Santos, pai dos Parangas de São Luis do Paraitinga, cena que refaz a origem histórica do caipira, aquele que é um agregado, tocado de um lado a outro.
Essa partida do Jeca, porém, enfoca outra situação real e mais próxima no tempo, o apelo ao modelo político brasileiro. Jeca viaja até São Paulo e, em troca de votos recebe suas terras de volta de um candidato a deputado.
Na casa do deputado, no meio da juventude a beira da piscina, Mazzaropi documenta o início do rock no Brasil, filmando um número musical com Celly Campello e Tony Campello e o seu cinema engaja-se na categoria de cinema-documental.
O italiano é punido, Vaca Brava é preso; sua filha casa-se com o filho do italiano e o Jeca, recuperado pela saúde, como queria Lobato termina como um vencedor, produtor, cidadão do mundo, apresentando o seu respeito à modernidade: galinha de botina, cachorro com casa de madeira, porcos de sapatos. Ao terminar este texto, nascido dentro do respeito à arte, a Monteiro Lobato e Mazzaropi, vou imaginar que, no interior de uma nuvem qualquer, há um lindo bolo de fubá, daqueles que Dona Cinira, esposa de Eupídio dos Santos fazia ao nosso cineasta criador do cinema brasileiro e rural.
Receita
Bolo de Fubá
Ingredientes: 4 ovos; 1 copo americano de óleo, 1 copo americano de leite; 2 copos americanos de açúcar; 2 copos americanos de fubá, 1 pitada de sal; 1 colher de sopa de fermento químico; sementes de erva doce a gosto; 1 xícara de queijo ralado.
Modo de fazer: Reserve o fermento, a erva doce e o queijo ralado e bata os demais ingredientes no liquidificador começando pelos líquidos. Sem bater, incorpore o fermento, a erva doce e o queijo ralado. Despeje em forma de cone central untada com óleo e polvilhada com fubá. Asse em forno médio pré-aquecido ( 180º) por cerca de 40minutos ou até dourar. Desenforme morno e deixe esfriar.
Por Adriana Padoan