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domingo 22 dezembro 2024
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Comilanças Históricas e Atuais – Dobradinha: um prato quente cheio de amor

I – D. João I – História de amor
Lá vem o rei D. João I, levando a rainha Filipa Lancastre ao seu passeio azul, branco, sombreado, iluminado como um azulejo grávido de arte portuguesa. À noite em seu castelo, D. João toma a suas taças de vinho, saboreia os doces vindos dos conventos misteriosos e, borbulhando em sonhos ama a rainha Filipa, amor sem ponto de partida ou ponto de chagada; amam e fazem oito filhos, todos de olhares voltados ao futuro.

II – Estaleiro – berço de navios
D. Henrique, filho do rei e da rainha, monta um estaleiro em Portus Cale, no ano de 1415. Esse estaleiro tinha como missão a produção de navios, que seriam usados na tomada de Ceuta, cidade situada na costa africana. Ceuta era estratégica para a expansão portuguesa; habitada pelos muçulmanos, recebia as caravanas do oriente, transportadoras de ouro, marfim, especiarias e escravos.

III – Montagem de uma tropa
Segundo os cronistas do tempo, a criação e organização das tropas deram um trabalhão, os soldados vieram de inúmeros lugares da Península Ibérica. Todos tinham um sonho, ou seja, conquistar Ceuta. Para o abastecimento do exército, Fernando Henrique solicitou a população de Portus Cale a doação de alimentos, isto é, tudo o que pudesse manter os soldados nutridos, fortes, saldáveis. O povo entendeu a necessidade e o momento histórico; entregou bois, carneiros, aves e a produção agrícola. Para alimentação dos cidadãos locais restaram as vísceras dos animais, uma parte da produção de grãos, legumes e frutas.

IV – Armadura do rei
D. João I vestiu seus trajes de guerra, despediu-se dos familiares, recebeu as bênçãos do padre protetor, incorporou a alma dos grandes heróis e partiu para a conquista de Ceuta, implantando com este gesto o espírito das cruzadas, do aproveitamento das vísceras bovinas como componentes da dieta gastronômica de Portus Cale.

V – A cozinha de Portus Cale
Em Portus Cale, a população que ficou em terra, após a partida do rei, precisou encarar a realidade eminente, como preparar as vísceras do boi atendendo a duas premências: matar a fome e aproximar-se do bom gosto. Um homem olha profundamente os olhos da mulher; a mulher observa os limões e a pichorra contendo vinagre. Os dois correm para as águas do rio e lavam, lavam, lavam as vísceras com água, limão e o vinagre. Ao termino desse exercício, fervem as vísceras em água, sal, banha de porco. Outros, também criativos, preparam as vísceras com feijões, legumes, sal e pimenta. Sem presa, mas com muita certeza, surge um sopão simpático, cremoso, gostoso… Havia em Portus Cale, na época, um poeta de rua, de festas, de camas carentes que, sem imaginar uma grande epopeia fez um poema denominado “tripas à moda do Porto”, assim o sopão foi batizado.

VI – Fernando Pessoa
O poeta Fernando Pessoa, gerador do Heterônimo de Álvaro de Campos, um ser alucinado pela modernidade, tira do seu coração o grito poético a que dá o nome de “Dobrada à moda do Porto”: “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,/Serviram-me o amor como dobrada fria”./ O poeta apontou o lugar, embora indefinido, apresenta uma referência. Este restaurante mostra uma ruptura com o tempo e o espaço, levando-os a qualquer parte do universo de infinitos tempos. O garçom, embora solícito e cortês, serve ao poeta o amor representando um prato de dobradinha, mas fria. O amor é quente, fervente, segundo Camões; dobra os corações, porem, quando quente. E Portugal, como todos nós, apaixonou-se por Fernando Pessoa diante de um espelho onde, vestindo um paletó surrado criou as suas imagens dentro de heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo de Campos, todos rindo e chorando lindamente, tendo um prato de dobradinha quente nas mãos.

VI – Mar azul
Os navios tentavam reconhecer o mar azul costurado a linha do horizonte. Pedro Álvares Cabral sentia o cheiro da nova terra que, gentilmente se aproximava. A terra era muito bonita, recheada de árvores, pássaros, índios, areia branca, calor misturado ao ar, a vida, ao sentido que descobre o lado avesso do mundo. Cabral, os frades franciscanos, a tripulação técnica, os marinheiros pulam dos barcos para a terra trazendo: desejos, sonhos, conquistas, domínio, esperança e a dobradinha à moda de Portugal.

VII – Os índios
Os índios, mergulhados na curiosidade, comeram dobrada à moda de todos os portos, fato histórico que evitou, nas palavras de Pero Antunes, que os selvagens degustassem os descobridores.
Assim, e não de outra forma, a dobradinha cativou os índios, os brasileiros, os restaurantes, os botecos, o amor, a paixão, a pinguinha, a cerveja, a crença, os destinos e os desatinos.
Neste momento do texto, parte conclusiva, vamos mergulhar em centenas e centenas de receitas de dobradinhas e, pedimos a Deus que nos auxiliem a transcrever uma receita representativa de todas as outras: Vamos lá.

Dobradinha com feijão branco

Ingredientes:
1 kg de dobradinha limpa; 1 kg de feijão branco; 200 gr de bacon; 300 gr de linguiça calabresa; 300 gr de linguiça paio; sal e pimenta a gosto, cebola, alho e pimentão a gosto; 2 tomates picados, cheiro verde a gosto.

Modo de preparo:
Fervente a dobradinha, escorra e lave. Coloque a dobradinha para cozinhar com água e sal. Cozinhe o feijão separadamente e escorra. Frite o bacon, as linguiças em uma panela. Refogue o alho, a cebola, o pimentão e o tomate nessa panela. Despeje o feijão e a dobradinha. Acrescente um litro de água e deixe ferver por 15 minutos. Coloque cheiro verde a gosto e está pronto.

Por Adriana Padoan