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sexta-feira 15 novembro 2024
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Comilanças Históricas e Atuais – Do kuchen ao quiche

O século XVI passeava pelas ruas, casas, praças do mundo. Os pescadores silenciosos vasculhavam as águas dos rios em busca do peixe azulado; os camponeses fertilizavam a terra com o suor do corpo caminhante; as mulheres amavam sobre os tetos dos casebres para gerar filhos; a lavanda perfumava a suavidade do vento; a Alsácia-Lorena, pertencente à Alemanha, palco de guerras desenfreadas em nome da posse e de territórios, conferia o número de vacas espalhadas pelos seus campos, passava os olhos na quantidade de leite adormecida em tambores de ferro; encarava o rebanho de carneiros bebendo água no riacho rasante, estoque de carne e lã em branda movimentação.

As famílias que habitavam o bosque das tulipas vermelhas preparavam-se para receber a visita do pároco do Mosteiro das Pedras. O pároco em visita vinha a pedido do Senhor Bispo para tentar enfraquecer o crescimento dos pensamentos luteranos na região. Os fiéis, contentes ou preocupados, não sabiam o que fazer para agradar o visitante santo. No início, pensaram em fazer o bolo da moça de fita, receita que atravessou as épocas; outros preferiam o enrolado de castanhas, receita das fadas da noite; a lavadeira da margem direita do rio, benzedeira de certa fama, sugeriu a feitura de uma kuchen, torta especial dedicada às comemorações ao deus Thor, principalmente nas noites de amor nas montanhas de Feldberg, momento que acontece a dança dos gamos enternecidos. Os camponeses do Bosque das Tulipas eram pessoas simples, mas traziam dentro de si os carinhos que alimentam os gestos de hospedagem, por isso aceitaram a sugestão.

Na casa de pedra, à margem direita do rio, as cozinheiras prontificadas reuniram-se para fazer a Kuchen, uma torta aberta muito antiga, tão antiga que não possui certidão de nascimento, batismo ou casamento. O padre saboreou a torta, as autoridades, homens de bem, apreciaram o gosto vindo de lugar desconhecido, homens, mulheres, crianças devoraram a Kuchen, e, sem documento de comprovação, a torta tornou-se uma lenda na Alsácia-Lorena.

A voz corrente, a voz que explode na altura das montanhas, que emergem no peito dos seres humanos diz que durante o nascimento de um sol combalido, típico do século XVI, Martinho Lutero aproximou-se da porta da igreja do castelo de Witlenberg; chegou, parou, pensou. Retirou da bolsa de pano que carregava rolos de papel impregnados com uma escrita trêmula, contendo palavras que foram retiradas dos dicionários expelidos pelo tempo engavetado, e os pregou na porta de madeira da igreja, madeira assustada. Os rolos expunham as 95 teses elaboradas por Lutero, questionando os abusos do clero da época e propondo um retorno à leitura das escrituras sagradas.

Antes dessa atitude que abalou o mundo Lutero tomou uma taça de vinho tinto, da cor do sangue espremido pela história; saboreou uma Kuchen recheada com o creme de leite espesso, ovos paridos por galinhas vermelhas, pedaços de toucinho carnudos e enfumaçados, com folhas de mostarda picada.

A mesma boca que se move para narrar os feitos das aventuras humanas, contou o encontro de Lutero com a ex-monja Cistercience Catarina von Bora, em noite de lua velada. O olhar revelou imagens pintadas nas palavras em oração; o coração disparou por caminhos e descaminhos; as mãos se tocaram como costureiras das lendas nascidas na presa da descoberta e da querência. Casaram-se na época em que as andorinhas retornavam aos telhados das casas. A freira Catarina cantava, costurava, tocava cravo e criara receitas famosas da Kuchen Alemã.

O tempo passou, a humanidade vestiu roupas novas, criou músicas ao anoitecer, escreveu novas histórias de amor, modernizou os ritmos embaladores das partidas e das chegadas, e a Alsácia-Lorena incorporou-se ao território Francês.

A França percebeu o valor gastronômico da Kuchen Alemã, teve arrepios internos ao sentir a sensualidade de sua forma, a beleza que uma boa maquilagem poderia produzir no corpo daquela torta aberta; um cozinheiro francês, mais exaltado, imaginou a Kuchen desfilando numa passarela. Outro, mais intelectualizado, analisou a torta pelo sistema fonético, os sons que se uniam para nomear o alimento, afunilavam-se numa corrente sonora, isto é, a Kuchen fonetizava-se como Quiche. Um cuisiner nascido em River Droit desenhou dezenas de vestidos para a quiche francesa, o costureiro que elaborou a Quiche de alho poró, exagerou no brilho, outro costureiro usou manteiga, presunto, queijo gryére, noz moscada.

A Segunda Guerra Mundial nasceu depois da invasão da Polônia pelos soldados alemães em setembro de 1939. O mundo estranhou a visão e a contação de uma história que acabara de sair da placenta do universo. A guerra girou nos territórios da Europa, África, Ásia e Oceania. Os combates expuseram suas chagas sangrentas, o seu cheiro contaminou os rios, as florestas, e lagos, e o vento que se recusava a viver. O massacre de Katyn envergonhou o planeta, o holocausto retirou o caráter e a pele que cobriam o globo terrestre, o massacre de Babi Yar fez o Pequeno Polegar rasgar as suas botas, rasgou na verdade a sua capacidade de correr pelo corpo do mundo. O lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki secou as lágrimas dos olhos das crianças da terra; os poetas engoliram o canto e a poesia; as fadas, os personagens da literatura infantil cobriram seus corpos e seus poderes com o lençol do desgosto.

Houve um momento preciso, exato, em que os microfones anunciaram o fim da Segunda Guerra. Os soldados abraçaram o ser humano mais próximo, as crianças brincaram com os restos de boneca, os maridos retornaram aos seus lares, os noivos vieram para casar, os jovens dançaram a cantoria das almas, a justiça brincou por instantes, de cabra-cega. A Quiche viajou com os soldados para a Inglaterra; andou pelas ruas de Londres, conheceu a cozinha da rainha, encantou o jovem que, anos depois, organizaria uma banda de rock. Outra Quiche entrou na mochila de um soldado americano, encantou a terra do capitalismo, dançou um balé nas bocas de New York, interpretou grandes papéis nas telas do cinema.

Hoje, em qualquer cantinho desse mundão de Deus a Quiche está no paladar da humanidade, está presente nas declarações de amor do casalzinho solitário, na fome que ronda reis e rainhas, no apetite do encantador de serpentes, nos bonecos de madeira que, com certeza, tornar-se-ão gente, como todos nós. Venceu o tempo, conheceu o universo dos artistas da gastronomia, vestiu roupas da nobreza e do povo. Agora, ao lado de Van Gogh, retrata-se no campo dos girassóis, voando para a eternidade!

Receita
Quiche Lorraine

Ingredientes:
Massa: 120 gramas de farinha de trigo, 60 gramas de margarina, 1 pitada de sal, 30 mililitros de água.

Modo de fazer:
Em uma tigela misturar a farinha de trigo, a manteiga e o sal. Faça uma farofa com as pontas dos dedos. Acrescente água até deixar a massa homogênea, sem sovar. Abra a massa com um rolo. Cubra a forma de fundo removível com a massa.

Recheio:
100 gramas de bacon picado ou faiado, 200 gramas de queijo gruyére, 2 ovos, 200 gramas de creme de leite (uma caixinha), sal e pimenta do reino a gosto.

Modo de fazer:
Em uma panela, em fogo baixo, coloque o bacon. Deixe que frite em sua própria gordura. Rale o queijo gruyére. Bata levemente os ovos e acrescente o creme de leite, o sal e a pimenta. Coloque o bacon e o queijo sobre a massa. Cubra com o creme. Leve para assar em forno a 200 graus por cerca de 35 minutos ou até dourar.

Por Adriana Padoan