O bar do Gonçalves Linhares era considerado o mais chique da região. As suas luzes coloridas davam vida ao ambiente. As mesas da época em que Maria Antonieta menosprezava o povo francês davam o charme necessário. Os lustres belíssimos decoravam o ambiente. No palco, um conjunto apresentava os sons da terra. Mulheres lindas, bem vestidas, falavam de Paris. Mulheres bem amadas, mal amadas, mulheres ideologicamente prostitutas de um passado próximo. No balcão de mogno, Abelardo unia dois copos de cristal, boca com boca, resultando numa imagem mágica, os movimentos desapareciam no ar; dentro dos copos, a cachaça, gelo, limão marcavam a passagem da noite. A caipirinha gelada, docinha, tendo como pano de fundo o período dos engenhos, da senzala, do grito que não fora gritado demarcava o novo tempo. Os lábios dos homens e mulheres, tocados pela bebida, perambulavam nas aventuras de um samba gerado no suor e na lágrima.
Nós sabemos, ao produzir este texto, que nada se pode falar da caipirinha brasileira sem passarmos os olhos pela obra do estudioso Câmara Cascudo. Segundo o estudioso, a caipirinha nasceu no organismo vivo representado pelos grandes latifúndios paulistas. Eram fazendeiros promotores de grandes festas, leilões de gado, na região de Piracicaba, na passagem do século XIX. Esses empreendedores rurais criaram um drinque com cara e jeito local.
Relendo o histórico da caipirinha constatamos que uma parte da receita nasceu no suspirar dos grandes engenhos, produtores do açúcar e da aguardente. O gelo, nessa época, era produzido nos reservatórios cobertos de algodão. O limão nascia nos campos, nas matas, e até nas divisas entre as fazendas. Os fazendeiros, chamados de Senhores da Terra, procuravam encontrar uma bebida que substituísse o uísque, o vinho, os licores e outras bebidas estrangeiras. Assim, a caipirinha foi conquistando os seus espaços prováveis.
Voltando um pouco no tempo, observamos os navios que atracavam no porto do Rio de Janeiro, terra quente, dengosa, tropicalista. Os marinheiros queriam brincar, em terra firme, de cantiga de roda com as prostitutas e, para se garantir emocionalmente, misturavam limão galego à cachaça encopada, uma mistura sublime que, aos poucos levava a marinhagem ao delírio.
No ano de 1856, não sabemos bem o motivo, uma epidemia de cólera abalou o Rio de Janeiro. O povo, os poucos estudiosos, diziam que a transmissão se dava pela água. Numa noite qualquer, o engenheiro João Pinto Gomes depois de participar de uma festança no cabaré da Acássia, misturou água, açúcar queimado, limão da serra e cachaça, explicando que a combinação desses produtos imunizaria as pessoas contra a cólera.
Por volta de 1918, o Brasil enfrentou a chamada Gripe Espanhola. Este fato faz parte dos livros escolares, dos bancos universitários, e sustentou teses e mais teses. Nesse período, a morte comandou as cidades, o mundo rural, matando milhares de pessoas. O fazendeiro Paulo Vieira, da região de Piracicaba, arregaçou as mangas da camisa e mergulhou num mundo repleto de tachos, fogareiros, foles, vaporizadores. Procurou, buscou, desejou chegando à fórmula de um remédio que ficou famoso na época.
O remédio de Paulo Vieira levava limão cortado e socado, misturado ao mel de abelha Jatai, alho de falcão, cachaça amarela. Não temos documentos precisos quanto aos efeitos da mistura, avó da caipirinha, mas muitos acreditaram que a bebida era milagrosa e combatia o vírus contaminador.
Para terminar a nossa busca, daremos uma breve olhada nos artistas que organizaram a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo. Mario de Andrade chorava dentro da lua, Oswald de Andrade bordava a sua poesia microscópica, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral giravam seus pinceis remodelando a pintura nacional. Todos combateram a burguesia, os uísques escoceses, os vinhos franceses, os licores produzidos nos sonhos europeus. Os jovens visionários, aos gritos, apresentaram a caipirinha como a bebida nacional. Para os modernistas, a caipirinha representava o símbolo da nacionalidade; o branco do açúcar representava a luta pela paz; o amarelo da cachaça, as nossas minas de ouro, o verde dos limões, representava nossas matas, os nossos índios; as pedras de gelo, a temperatura das nossas cachoeiras.
Mas isso é história da história que um dia será discutida, estudada, contemplada. Agora, sem beber nem um golinho, vamos à receita:
Caipirinha
Ingredientes:
60 ml de cachaça
1 limão
2 colheres de chá de açúcar
Gelo a gosto
Modo de fazer:
Corte o limão em fatias finas, macere-o levemente com açúcar. Tome cuidado de não esmagar demais o limão. Encha o copo com gelo e ponha a cachaça. Misture, enfeitando com fatias de limão.
Adriana Padoan