Era noite marcada pela semelhança com todas as outras noites. Não sei explicar o motivo exato, mas eu lia o romance “Crime e Castigo”, de Dostoievski, quando o personagem Roskolhnekov, em sua dúvida áspera, pensou numa possibilidade bem chegada ao ser humano, quando em solidão; percebeu que o homem produz a história, pode e tem o direito de entrar nos acontecimentos, mesmo quando o fato em si foi provocado por mera casualidade. Neste momento, mesmo tomando um lanche, lembrei-me do filme Forrest Gump, da quantidade de prêmios recebidos no mundo, e como a sua história causou uma revolução no interior de todos os que o assistiram.
O filme inicia-se com Forrest sentado num banco existente em todos os pontos de ônibus do mundo. Uma pena surge no ar, carregada pelo vento, movimenta-se sem destino. A pena tem uma função biológica, distinguir o mundo das aves e o espaço dos animais. É um protetor de um corpo cheio de vida; protege esse corpo do frio, do vento exagerado, do ambiente e, ao mesmo tempo dá beleza à vida. É o que liga o corpo da ave na busca do céu e da terra, da fuga e do prazer, do mundo e da paz, do amor e do desespero. Na antiguidade e também no presente, a pena representou e pode representar o choque entre o espírito e a matéria, a esperança e o início de novas ideias.
Voltando ao filme, Forrest Gump conta histórias de sua vida a todas as pessoas, mesmo as desconhecidas, que construíram a moderna história dos Estados Unidos e do mundo atual.
Ele nasce num Estado dos mais preconceituosos dos Estados Unidos. Sua casa, herança deixada à sua mãe é enorme. Essa realidade faz com que ela alugue quartos aos viajantes de passagem, vendedores, estudantes. Forrest Gump mora com a mãe, é filho de mãe solteira, e nasceu com o QI abaixo da média. Há uma cena que pode exemplificar o modelo de vida da década de 50; a mãe tenta matricular o filho numa escola americana de boa qualidade. O diretor não aceita a matrícula de Forrest, levando em consideração o seu baixo QI, o caso de aparelhos ortopédicos e a sua dificuldade em comunicar-se. Num final de tarde, na cama da mãe de Forrest, o diretor consegue liberar a sua opressão sexual; e a matrícula do menino é realizada.
Forrest começa a frequentar a escola, sofre bulling em todos os seus momentos, o seu ser é chamado de idiota, imbecil, retardado. Os “amigos”, entretanto não percebem a sua honestidade, consciência, confiança, amor, destino, profecia. Na escola, entre tantas perseguições, Forrest encontra uma amiguinha chamada Janny, abusada sexualmente pelo pai bêbado. A história americana, a partir daqui, resolve retirar a sua máscara, aos poucos.
A penetração de Forrest na história de 50 a 80, principia quando um jovem americano, desconhecido, chamado Elves Presley, hospeda-se em um dos quartos de sua mãe. Ele tocava violão, o som é estranho, mas Forrest tenta dançar, mesmo preso aos aparelhos nas pernas; no entanto o seu corpo, o seu quadril, rompem o espaço, ensinando o jovem roqueiro a criar uma dança inédita, que irá sacudir o mundo.
Há um instante no filme que determina a mudança radical do processo narrativo, isto é, o roteiro abandona o gênero trágico-cômico, levando o processo criativo para o realismo fantástico, a realidade caminhando sem a mínima explicação, racionalidade e lógica. Forrest corre fugindo de uma perseguição dos alunos da escola e, de repente seus aparelhos ortopédicos vão se desfazendo, estourando, rompendo-se, e Forrest atravessa em alta velocidade, um jogo de futebol americano. Esse acontecimento mágico o coloca na loucura possível do universo.
Partindo desse contexto ilógico, Forrest rompe o cerco da segregação racial, da violência militar, da revolta dos estudantes brancos tentando impedir a entrada de dois alunos negros na faculdade. O presidente Kennedy, autor do fim da segregação racial, assiste ao momento em que a aluna negra derruba um caderno, e Forrest rompe o cerco policial e dos brancos revoltados e, num gesto humilde e sincero entrega o caderno a estudante negra.
A câmera fotografa de cima para baixo. O povo americano caminha pelas ruas de Washngton, uma nação acreditando que o futuro era um fato possível; a marcha parece o cordão da esperança estendido num chão; Martin Luther King, olhar fixado em algum lugar do céu, diz que tem um sonho; Bob Dylan soluça em música, Joan Baez canta baixinho “Parece que foi ontem/deixei minha cabeça para traz”, Forrest Gump acompanha o protesto agindo exatamente como alguém perdido numa rua sem placa.
A casa e o silêncio da noite. A televisão ligada transmite imagens carimbadas para a posteridade; Forrest, pés no chão, procura o seu chinelo; Neil Armstrong coloca os pés no solo lunar e Forrest tenta localizar o seu chinelo sem perceber que a humanidade encantava-se de emoção.
O destino não se esquece de Forrest e o coloca no avião que sem entender nada do tempo, voa para o Vietnã. A guerra que parece um pesadelo invade os resíduos mais diminutos da sensibilidade, e Forrest corre, corre, sem notar as bombas, as metralhadoras, os incêndios, os rastros de sangue e, correndo leva os amigos feridos em suas costas. Em sua cabeça, existe a imagem do soldado Buba, que passou todo o tempo de guerra, falando em montar um negócio de pesca de camarão em sociedade com Forrest. É doloroso, mas tremendamente trágico, quando Forrest encontra Buba ferido, pega-o no colo e como um menino machucado, Buba diz a Forrest: “quero ir para casa”; a sua alma libertara-se do corpo e, como diz Manoel Bandeira, “entra no céu sem pedir licença”. Nunca, mesmo tentando, o cinema fez uma crítica tão pungente e aguda sobre a violência da guerra, como essa cena observada a partir do olhar de Forrest.
A guerra do Vietnã acabou porque o horror resolveu partir da terra. Forrest é recebido na Casa Branca mais uma vez; estivera com Kennedy como atleta de futebol; agora, frente a frente com Lindon Jonson na condição de herói de guerra; um herói sincero e honesto, tão autêntico que, com muita calma, desce a calça para mostrar o ferimento nas nádegas ao presidente dos Estados Unidos da América do Norte.
Movido pelas circunstâncias da história, torna-se campeão mundial de ping-pong. Levando uma bolinha no bolso Forrest visita a China, abrindo o caminho de acordo de paz entre os dois países. Esse feito o leva a Casa Branca, local que se tornara costumeiro em sua existência. Richard Nixon o recebe, convida-o a se hospedar no Watergate Hotel. Forrest liga à recepção do hotel para reclamar da quantidade de lanternas acesas refletindo em seu quarto, na sua cama. Ele, como sempre presencia a invasão aos escritórios do partido democrata, crime vergonhoso, covarde, cruel, que derruba o presidente Nixon; para Forrest, no entanto, o que estava em jogo era a perturbação de seu sono, exatamente como estado insônico da nação americana.
Forrest consegue comprar um velho barco, não porque o barco é bom ou lindo, pesqueiro ou de transporte, mas para fundar uma companhia de pesca de camarão, prometida ao amigo Buba, falecido em seus braços. Coloca o amigo Dan como sócio, um tenente revoltado, que perdera as duas pernas em combate. Assim, nasce a empresa Buba Gump Shrimp, gerando restaurantes em todos os Estados americanos, o camarão de Buba invade a Inglaterra e o mundo.
Era noite porque a escuridão escondeu as ruas. O programa de TV mais importante dos sonhos americanos entrevista Forrest e John Lenon. As respostas quase infantis de Forrest, inspira aquele moço simpático a compor Imageni.
O filme terminou com a pena de um pássaro sobrevoando a consciência do mundo./Os copos, os talheres, vestígios do lanche que tomei, enquanto assistia ao filme, silenciados sobre a mesa/a dor marcando a minha alma/meus olhos umedecidos/. Neste instante percebi que Forrest Gump, o filme, escalpela dois mundos/o do homem desconectado do universo do QI perfeito e o mundo da menina Janny, apresentando e vivendo o odor da sociedade americana/a revolução dos hyppes/a liberdade movida pelo amor, pelo sexo, pelas drogas, usando brincos exagerados, cabelos longos, festivais, mergulhados no sangue que respingara do Vietnã/.
Olhei para o silêncio da sala, para legenda do filme subindo a escada final. Percebi, então, que o mundo de Janny, da mulher na época é enorme e, por isso, fica para próxima semana.
Receita Buba
Strogonoff de camarão
Ingredientes:
1 colher (sopa) de manteiga;1 cebola média ralada;1/2kg de camarão médio limpo; Sal e pimenta do reino;4 colheres (sopa) de conhaque;100g de cogumelos em conserva picados;3 colheres (sopa) de catchup;1 colher (sopa) de mostarda;1 caixinha de creme de leite.
Modo de fazer:
Limpe os camarões, retire as cascas e lave muito bem em água e limão, escorra e reserve;Aqueça a manteiga e doure nela a cebola;Junte os camarões e mexa bem, tempere com sal e pimenta;Aqueça o conhaque em uma concha até este pegar fogo e despeje-o sobre os camarões, flambando-os;Junte o cogumelo, o catchup, a mostarda e deixe ferver por cerca de 5 minutos;No momento de servir, junte o creme de leite, mexa bem e aqueça sem ferver.Sirva o strogonoff acompanhado de arroz branco e batata palha.
Por Adriana Padoan