A arte de contar história já estava na cabeça do homem primitivo. A caverna era o palco, o grupo ainda tinha um vazio no pensamento, mas podia representar a gravidez da simbologia em forma de sugestão. A escuridão escondia os sonhos, os relâmpagos eram os destruidores de medo.
A palavra teatro surgiu da terra úmida da Grécia. O seu significado ainda não abandonara o corpo do seu significante, no entanto, com um pouco de raciocínio prematuro, surgia um pedaço de ideia que tentava expressar: “sou um lugar onde se vê as coisas”.
Os dias andavam sem gosto, estudo, vontade ou desgosto. O teatro nasceu numa mistura com a religião, as encenações cantavam, dançavam, murmuravam as invocações aos deuses. Na Grécia, sempre em seu útero, surgiu o diálogo anunciador de uma história a ser contada.
Pulando um pouco pelas barranqueiras da vida, rolando pelos fios dos cabelos de 1980, o escritor Ernest Thompson, depois de pensar em sua família e na família de muita gente, escreveu a peça de teatro “Num lago dourado”; criou espaço, ambiente, cenário, personagens e uma história com o gosto amargo de psicologia. Em 1981 andando pelos labirintos de estúdios cinematográficos, recriou a sua peça de teatro usando a técnica de roteiro cinematográfico, um linguagem vestindo outra máscara, um novo jeito de existir. O produtor de cinema Mark Rydell adorou o texto e resolveu filmá-lo e assim, não de outra forma, nasceu o filme “Num Lago Dourado”, realizado em 1981.
I – O filme
Há escolhas, atitudes, desejos, que são escolhidos ou orientados por Deus. O diretor Mark Rydell escalou o ator Henry Fonda, com 76 anos, para representar um dos protagonistas, o diretor de escola Norman Thayer. Fonda estudou jornalismo na Universidade de Minnesota, porém, no momento de escolher o seu caminho, escolheu o cinema como profissão, paixão, e um pouco de destino. Atuou em mais de 20 filmes. Seu nome e o seu trabalho burilou a grandiosidade do mundo da imagem em movimento.
Para viver a personagem Ethel, esposa de Norman, o diretor convocou a atriz Katharine Hepburn, ganhadora de três Oscar e participante em mais de 40 filmes; nunca, na trajetória de Hollywood, a experiência, o talento, a vida, as interpretações, foram unidas de formas tão perfeitas, necessárias, e úteis para a grandiosidade da Arte.
II – Num lago dourado
Norman Thyer Junior e sua esposa Ethel chegaram ao Lago Dourado para o seu retiro costumeiro, descansar o corpo, a alma numa simples cabana, no meio de uma floresta e a margem de um maravilhoso lago. Ele fora diretor de escola e ela, ao longo da vida, atuou como professora.
Os seus planos sempre foram imitações dos anos anteriores, no entanto, neste ano, Norman comemoraria os seus 80 anos de vida. Outro fato que abalou a rotina das férias foi o anuncio que sua filha Chelsea Thauer, com quem sempre tivera uma relação conturbadíssima, chegaria para o aniversário do pai, trazendo o seu atual namorado e seu filho Billy Ray.
Outra notícia que desarticulou os seus planos veio de repente, quando o velho casal soube que Billy Ray ficaria com eles por um tempo, enquanto a filha viajaria com o namorado para a Europa.
A partir daqui, usando uma técnica de profundidade, o filme passa a enfocar as relações familiares espalhadas pelo mundo de todos nós. Como disse Lacan, em um de seus textos, a relação familiar que interessa à psicanálise é o palco onde o drama edípico se realiza, onde o sujeito consegue se constituir e onde estão presentes, não somente o pai, a mãe e o filho, mas o outro, o desarticulador.
As questões que boiam na superfície do lago não estão presas dentro de um tempo, estão engarrafados na atualidade e veste a mesma roupa do tempo que aconteceu.
O jeito de Norman, o seu eu ou parte dele, apresenta um humor sarcástico, ridicularizador; ele tem uma maneira de se manifestar que oprime, constrange. Além desse comportamento, fala muito da morte, do fim, do sofrimento cardíaco.
Ethel tenta trazer o marido para a existência mais humana, um lugar que cabe, com certeza, um pouco de ânimo, de sorriso.
A cena que documenta o reencontro de pai e filha é contrastante; não se olham, o abraço recai na rejeição, as palavras soam como lixas que se esfregam e mutilam.
A festa dos oitenta anos passa arrastada no sombreamento do rosto, do gesto. O fim da festa, desejado por todos, chega e se vai levando a filha à Europa.
O lago, a beleza, o paraíso perdido dentro de cada um. A amizade entre o menino e Norman nasce no mistério das águas. Os dois se ensinam, os mundos são revelados, adotados, aceitados. O menino consegue pescar a velha truta que, há dez anos, Norman tentava pesca-la. Truta grande. Peixe vivido dentro das ondas e do tempo. O respeito entre o velho, o menino, e o peixe, identifica o sujeito como a estrutura em Lacan. Eles batizam o peixe, dão-lhe o nome de Walter e o devolvem ao reino das águas, à família que, estruturada ou destroçada, o Walter possui.
O barco, desgovernado pelas corredeiras, joga Norman no rio, no recanto das pedras negras. O menino pula na água, enfrenta a força que vem da boca do rio, salvando Norman, a sua velhice, a sua rabugice, fortalecendo o amor, a amizade, nascidos na convivência entre gerações.
Em meio a todos os acontecimentos, Chelsie volta sozinha, o marido, pois eles se casaram na Hungria, pai de Billy, fora atender um paciente. Os dois, Norman e o menino, ainda estão no barco, brincando e rindo. Chelsie comenta com a mãe Ethel, que o pai nunca a tratara daquele jeito.
Ao descer do barco, ainda rindo, Norman comenta com Chelsie que o menino conseguira pular do trampolim do lago, feito que ela nunca conseguira, desde criança.
Ela olha o pai, olhos nos olhos, mesmo com medo, caminha até o trampolim, passo a passo. Sobe a escada branca que leva ao topo. O pai grita, incentiva, aperta as mãos, sente o coração bater com os pés afastados do acelerador. Chelsie pula, pula e salta; o corpo navegando no ar e o mergulho assustando o lago. Ele abraça a filha, sente a emoção sacudir o seu corpo, o seu desejo de ter tido um filho homem entra no vapor que bafeja na boca do lago. Na despedida da filha Norman entrega-lhe uma medalha que, há tempos, ganhara numa olimpíada.
E Freud, tomando um café, num lago qualquer, em outra dimensão, diz bem baixinho: “O Complexo de Édipo é universal, o que não significa ser idêntico em todos os lugares, em todas as culturas. No Lago Dourado, Édipo tem feição própria”.
O tapete vermelho estendido.
Luzes, flash, jornalistas.
Estilistas pavoneando o Olimpo.
Henry Fonda recebe o seu primeiro Oscar.
A estatueta que o ator a espera há setenta e sete anos.
Katharine Hephurn, a Ethel, recebe seu quarto Oscar.
E Walter, a truta do Lago Dourado, não foi prêmiada.
Receita
Truta com amêndoas
Tempere os filés com limão, sal e pimenta branca. Pense, por um minuto apenas que o peixe foi pescado no Lago Dourado. Deixe marinar por pelo menos 2 horas, enquanto isso tente ouvir o sorriso de Billy brincando com Norman. Aqueça a frigideira antiaderente com um fio de azeite e deite os filés com a pele para baixo, como se estivessem deitados nas margens do rio. Não se esqueça que as peles das trutas são fininhas, como carinhos doados pelas espumas do lago, por isso, cozinham rapidamente sem a necessidade de virá-las. Não tente virá-las, pois o lago é tremendamente ciumento.
Para o molho (receita para 2 filés) basta aquecer duas colheres (de sopa) de manteiga em fogo baixo até derreter, acrescentar amêndoas em lâminas e mantê-las até dourarem. Cuidado neste momento, elas são muito tímidas, douram por qualquer carinho que leve um tempo exagerado.
Eu servi o peixe sobre um purê de batata, pensando na suavidade que embala a vida secreta das trutas e as reguei com o molho levemente como se fosse o calor de um beijo completando a receita.
Por Adriana Padoan