I – A história real
Havia um sapateiro na Escócia, entre sapatos, a beleza da natureza, e o amor a mulher, os dois geraram um filho chamado Alexander Selkerk; o local da gravidez, segundo dizem foi na cachoeira dos suspiros.
Os personagens estavam vivendo conflitos do século XV. A data mais precisa, para não permanecer na dúvida, situava-se no desenrolar do século XVI.
Alexander Selkerk cresceu brigando com os irmãos, com os pais, com os colegas, com pessoas, nas ruas, nas padarias, no mercado. Na igreja, no andar da missa das nove, cantou a mulher do sacristão; encostou-se na destacada senhora do Juiz, usando palavras de baixa erotização. Foi detido por trinta dias esperando pelo julgamento jurídico e popular. Fugiu da prisão alistando-se como aprendiz de marinheiro num navio negreiro.
Enfrentou mares bravios, descontentes, tristes, revoltado com o tipo de carga, navegando a temperatura das águas; sofreu um naufrágio num ponto desconhecido do Pacífico. Foi encontrado com vida, três dias depois, por um navio pescador de tubarão e levado para o porto mais próximo. Ao entardecer do dia de São Tiago, embarcou num navio corsário escocês. Na décima noite de navegação, lembrou-se de Eduarda, amor expressado por sussurros; brigou no convés; após a briga ocorrida no brilho das facas, foi punido severamente. O corsário, homem que, por orgulho e narcisismo, gostava de mostrar as 103 cicatrizes espalhadas pelo corpo; abandonou o marinheiro Selkerk na Ilha Juan, completamente deserta, na costa chilena. O sol queimava a Ilha Juan, as praias ardiam lentamente sob os devassados discursos orquestrados por ondas enormes que moviam nas raízes dos coqueirais distribuídos no meio do silêncio. Ele montou duas cabanas, caçou cabras e tartarugas que, nas noites sem ruídos planejados, botavam os seus ovos no sossego alongado pela eternidade. Domesticou uns gatos selvagens, transformando-os em confessores, amigos, companheiros. Viveu quatro anos afastado das maratonas vividas pela sociedade. Foi resgatado por um navio mercante. O seu salvador, Capitão Roger, escreveu um livro dobre as aventuras do jovem Alexandre Silkirk.
II – Da realidade para o cinema
O livro escrito por Roger sobre as aventuras de Silkirk foi lida inúmeras vezes pelo escritor londrino Daniel Defoe. As noites de 1710 motivaram Daniel Defoe transportar a história real de Silkirk para o mundo da ficção. Usou linha para costurar, poesia para encantar, e a estrutura do romance para suportar a efervescência da história. Imaginou um personagem chamado Robinson Crusoé, um jovem apaixonado pelo mar que, em uma noite de loucura do deus Posseidon e sua sereia Anfitrite. O amor dos dois elevou as ondas para além das alturas regulares, e o navio em que Robinson Crusoé servia como marinheiro naufragou na costa do Brasil; Robinson foi parar numa ilha deserta. A ilha era usada, de vez em quando, para a prática do holocausto por uma tribo de canibais. No dia que os caranguejos dançaram na areia, Robinson salvou um índio do sacrifício ritualizado. Deu-lhe o nome de sexta-feira, transformou-o em aluno de inglês, dos seus costumes, confidentes dos seus desejos por 28 anos. No fim, fizeram uma jangada para a fuga e foram recolhidos por um navio que seguia para a Inglaterra. Nesse texto de Defoe há uma crítica ao sistema de colonização das Américas, a destruição da cultura indígena e a imposição da experiência social do homem branco sobre uma cultura primitiva.
III – O filme “Náufrago”
Tom Hanks, em 2017, sentado em uma poltrona em sua dala de jantar, leu um artigo jornalístico sobre a famosa empresa americana FedEx. A organização possuía 747 aviões que navegavam sobre o Oceano Pacífico, três vezes por dia, levando pacotes de presentes, remédios, alimentos, roupas, produtos de casa, declarações de amor, lembranças de beijos que se transformaram em esculturas simbólicas para milhares de casais. Tom Hanks, em uma breve fração de segundos pensou na possível queda de um desses aviões; levou a ideia ao roteirista William Broyles. A singularidade do filme começa nesse exato momento, pois o roteirista passou uma temporada no Campo de Sobrevivência do México, local isolado, onde o objetivo é viver só, em solidão, aprendendo a caçar, pescar, alimentar-se de frutas e de tudo que se move. Esse retiro ensina e demonstra, também, como dominar o passado, os amores, as paixões, os amigos, o trabalho, em confronto com o medo, a necessidade de sobrevivência, a relação do “Eu” evoluído e do “Eu” primitivo, uma preocupação freudiana e, até certo ponto, os embalos sacudidos pelas ideias darwinianas.
Outro fator interessante é a revelação da dificuldade de intertextualizar outras narrativas anteriores ao universo da modernidade, fato que levou William Broyles a escrever o mesmo roteiro, mais de 100 vezes.
IV – Náufrago
A empresa de entrega FerEx – um exemplo transparente do mundo globalizado, representa na estrutura econômica norte-americana, um modelo de ritualização da movimentação do capital por terra, ar, mar, por se tratar de uma empresa que comercializa a necessidade que os seres humanos têm de comunicar entre si. A firma entrega a saudade, o amor, a amizade, a necessidade de sobrevivência humana e cultural, e peças que movimentam as grandes indústrias.
Chuck é um tipo de funcionário que se entrega à empresa, isto é, primeiro entrega o seu corpo e, de acordo com o mundo produtivo, acaba cedendo a alma. Ele tem uma noiva, vivem projetos de vida condicionados pelos sonhos. No mundo capitalizado, como chefe, associa a sua imagem a um sacerdote que se preocupa e escraviza-se com relação ao tempo, ao dever e ao compromisso da entrega entre o envio e o destinatário. Ele só se esquece de um pequeno detalhe, da sua vida, dos seus projetos, da presença e desejos da noiva. O seu dia transcorre no espaço fixo da empresa ou em aviões que cruzam os oceanos transformando o mundo em espaços sincronizados aos mistérios do capital.
Em uma noite de natal, durante a ceia, ao lado dos familiares, dos pratos simples e enfeitados, sob o brilho da árvore natalina, Chuck interrompe o jantar, após se deliciar com a sobremesa, pudim de maria mole, doce predileto de Chuck, que sua noiva fizera, para voar em direção a Moscou, onde instalará uma filial da empresa. Dá o seu presente à noiva, uma agenda completa; recebe de presente um relógio de bolso, herança do seu passado, com a foto da noiva no interior da tampa. A despedida é rápida e confusa, mas Chuck sai do carro para entrar num avião de carreira. Em relação aos textos anteriores, todos os náufragos enfrentaram o naufrágio em embarcações; no filme “Náufrago”, a premonição dos fatos centraliza-se no avião, um dos representantes do mundo moderno.
Chuck enfrenta turbulências, chuvas avassaladoras, raios, trovões; o avião mergulha no mar, explodindo-se lentamente. Nesse instante da narrativa, o avião enfrenta o mesmo destino dos textos precedentes, a luta pela sobrevivência no mar.
A cena é rápida e desesperadora; mar agitado, destruição da lataria do avião, Chuck consegue escapar em um bote salva vidas inflável, desmaia, afastando-se interiormente dos caminhos de sua existência, flutua sob os reflexos das estrelas, até ancorar em uma ilha deserta.
A ilha é desabitada, afastada do mundo, afastada dos sonhos e dos conflitos da humanidade. As ondas trazem à ilha vários pacotes que estavam no departamento de carga do avião. Em sua cabeça ainda existe o compromisso de entregar aqueles objetos aos destinatários. Ele, de forma inconsciente, ou seja, buscar alimentação, água, abrigo, controlar a ansiedade, o medo, o desespero. A solidão é um barquinho que navega em todos os lugares da ilha.
Com o passar dos tempos, movido por ações desordenadas, faz um barco aproveitando pedaços de madeira, de arvores, espalhados pela ilha. Lança o barco na água e descobre, com surpresa, a presença de ondas poderosas, os recifes de corais, que impedem a sua partida da ilha.
O seu caráter de ser humano preso ao relógio, aos compromissos impostos por organizações econômicas, passa por um processo literário. Aos poucos, começa a abrir os pacotes trazidos pelo mar. Acha, em um deles, um vestido de renda, que é, primitivamente, adaptado em rede de pesca; em outro, encontra um par de patins, as lâminas são adaptadas como facas. Um dos pacotes, porém, tem um desenho de um par de asas de um anjo, impresso em cor amarelo. Esse pacote não é aberto, passando a simbolizar a sua esperança de partir da ilha.
A sua luta para produzir o fogo, realiza um retorno aos princípios do homem e início da civilização. O processo de fricção entre dois pedaços de madeira é lento, danoso, doloroso. A sua dor e a fotografia dessa dor, surge no sangue escorrendo das suas mãos. A sua revolta está na ação de, num ato de raiva, segurar uma bola de vôlei, marca Wilson, trazida a ilha em uma das caixas abertas, e lança-lo para longe. As suas mãos ensanguentadas gravam-se na bola, parecendo o desenho de um rosto humano, e, a partir desse momento, nasce o personagem mais lírico da história do cinema, uma bola, com o desenho de um rosto, passa a ser o seu amigo, confidente e garantidor de sua existência.
Usando a parte de um banheiro portátil trazido pelo mar, Chuck constrói uma jangada e vence a bravura das ondas. Navega vários dias e várias noites, assiste o borrifo de uma baleia que passa rente a sua jangada; perde a bola, o seu amigo Wilson, momento mais significativo do filme; perde a poesia, a companhia, o apoio, o desejo de vivenciar um instante na presença do “outro”.
Um navio cargueiro o recolhe da calmaria simbólica do mar. O corte de cabelo, da barba, a troca de roupas o trazem de volta a civilização. Houve comemorações em homenagem ao seu retorno. A sua noiva, porém, casou-se e tem uma filha. O mundo se transformou, no entanto, o único laço que unia os seus dois mundos, era a caixa com os dois anjos. Ele entra em seu carro, corre nas mãos da brisa e na beleza das estradas, atravessa pastos, áreas gramadas, encontrando a casa do destinatário da caixa dos dois anjos, o destinatário não está, mas no retorno o encontra numa encruzilhada e, no futuro que está a dois passos dos acontecimentos, tudo poderia recomeçar, retornar, refazer-se na composição de todas as sinfonias que orientam a vida.
Receita
PUDIM DE MARIA MOLE
Ingredientes: 2 caixas de maria mole; 1 xícara (chá) de leite quente; 1 caixa de leite condensado; 2 caixas de creme de leite; 1 colher (chá) de aroma de baunilha (opcional).
Modo de preparo do pudim: Dissolva a maria mole no leite quente e coloque no liquidificador. Bata por 3 minutos, acrescente os demais ingredientes e bata por mais 2 minutos, despeje em uma forma untada e leve à geladeira por 6 horas. Retire o pudim da geladeira e desenforme. Espalhe a calda por cima, se preferir decore com coco ralado.
Ingredientes da calda:2 xícaras (chá) de açúcar; 1 ½ xícara (chá) de leite
Modo de preparo da calda: Em uma panela coloque o açúcar e leve ao fogo, deixe até derreter totalmente, acrescente o leite fervendo (fora do fogo). Misture e volte ao fogo para incorporar. Deixe esfriar e bata no liquidificador.
Por Adriana Padoan