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sexta-feira 15 novembro 2024
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Comilanças Históricas e Atuais – A gaivota

Sou uma gaivota branca, nascida e criada no mar e nas praias do vilarejo chamado Jutlândia, na Dinamarca. Eu desperto com o barulho das ondas; principio o meu dia sobrevoando o ilimitado universo do mar; após esse meu contato visual com as águas azuis, inicio a minha busca constante, localizar cardumes de peixes percorrendo as águas em nome da sobrevivência.

O cineasta

Na tarde de sexta-feira, pousei ao lado de um homem que estava sentado numa pedra escura, no final da Praia das Quebradeiras, pensando na cor da solidão, no cheiro da solidão, no significado da solidão. O nome dele, Gabriel Axel, despertou-me uma ponta de curiosidade; ele era roteirista e diretor de cinema; confessou-me que organizava, mentalmente, um filme que se chamaria “A festa de Babette”, uma história que poderia acontecer no minúsculo vilarejo de Jutlândia, com os homens e mulheres que habitam o local. Ele contou-me, mais ou menos, o enredo do filme; convidou-me a participar de uma cena significativa ao entendimento da mensagem implícita.

O enredo básico

A personagem Babette chega ao vilarejo de Jutlândia em noite de sombras, vento, frio, chuva, fugindo da França durante a repressão da Comuna de Paris. Esse momento histórico envolveu a queda da monarquia, a proclamação da república, da insurreição nas ruas de Paris. Houve muitas batalhas para expulsar os comunistas. Prenderam 500 pessoas, mais de 20 mil mortos, e o fechamento do “Café de Anglais”, símbolo da desigualdade entre as classes sociais. Babette perdera o marido e 2 filhos nos combates de rua e também, o seu cargo de Chef misteriosa da cozinha do Café de Anglais, mas voltando à chegada de Babette ao vilarejo, ela se emprega como faxineira e cozinheira na casa de duas solteironas, filha de um pastor-profeta, fundador de uma seita religiosa, brotada na ideologia luterana.

Um dia fica sabendo que havia ganhado uma pequena fortuna na loteria francesa. De posse desse dinheiro, pede permissão para preparar um jantar francês em comemoração ao centésimo aniversário do pastor já falecido. Os convidados, moradores do vilarejo assustam-se, temorizam-se, preocupados com a possibilidade de ferir as leis divinas. Há reuniões, questionamentos, mas no final, em comum acordo, aceitam o jantar e assim os convidados comparecem à homenagem ao pastor-profeta, memória constante no coração de cada morador.

A minha cena

Eu pensei que o cinema produzisse um filme na sequência da história a ser contada. Mas não é assim, o diretor pode fazer uma cena do começo e, mais tarde, uma cena do final, e depois, uma cena do meio. As câmeras chegaram à praia, montaram rapidamente as máquinas. Centenas de fios espalhados pelo chão, uma loucura! À atriz que representa Babette caminha pela praia deserta. As ondas do mar, agitadas, cantam músicas desconhecidas. Há um barco de pescador perdido no areal. Babette invadida por pensamentos. Eu voo sobre os enigmas do mar, rente às ondas raivosas. Deserto, mar, imensidão, movimentação, refletem os pensamentos de Babette. Esta foi a minha participação no filme.

Meu olhar no filme

Os técnicos correm de um lado ao outro, os atores repassam os textos. O diretor parece concentrado em si mesmo, questionando a infantilidade humana. Eu sou uma gaivota, um conjunto de penas, participando da natureza, mas consigo pensar, refletir, divagar sobre as coisas produzidas pelo pensamento dos homens e das mulheres. No filme, pelo jeito, não há a presença da mãe, logo, a figura de Édipo perambula livremente pelo povoado. As crianças são poucas, a continuidade do equilíbrio e desequilíbrio da população está ameaçada. O pastor profeta criou uma seita compromissada com a renúncia dos comprometimentos humanos, o viver é submetido a regras, deveres, devoções. O homem deve vestir-se apenas para cobrir a nudez; o ato de comer deve contentar e suprir as necessidades básicas para garantir a sobrevivência; nada de cor, de sabor sofisticado, algo que desperte a gula. Em Jutlândia, o termo gula, palavra revirada pelos gregos e ressemeada com outros sentidos, tais como, glutão, gourmet, gourmand, não vivia no reino da Dinamarca. Esse radicalismo religioso gerou um povoado habitado por pessoas amargas, torturadas, bloqueadas, ressentidas pelos contornos do passado, prisioneiras do próprio interior. Eu vi essas coisas, mas o diretor também as viu.

Meu segundo olhar no filme

As câmeras abriram-se no povoado. As casinhas cinzas, fumaça picotada pelas chaminés. O mistério dentro de cada casa parece insondável. O meu pensamento voa acompanhado pela distância. Ontem, eu e meu marido, amamo-nos sob o céu estrelado, iluminando a velha figueira. Em nome desse ato de amor, pensei no instante em que o pastor nomeou as suas filhas. A uma delas deu o nome de Martina, procurando saudar Martinho Lutero, mago dos conceitos abertos e fechados; à outra, deu o nome de Felipa, em homenagem ao astrônomo Felipe Melancton, um dos lideres do Luteranismo, homem que levou à renuncia dos prazeres da vida, como exigência divina. Eu sou uma simples gaivota, mas arrisco a dar um palpite, sobre o relacionamento das duas moças. O soldado chegou, viu Martina, esquentou o coração, no entanto partiu tentando entender o impossível; veio Papin, barítono francês, amarrou Felipa aos sonhos de Mozart e também partiu navegando ondas raivosas do mar. O pai das duas, Édipo às avessas, sentiu-se vitorioso pelo abandono dos futuros pretendentes e a filmagem recomeçou.

Meu terceiro olhar no filme

Eu não sei muita coisa da vida, hoje, por exemplo, pesquei um peixe maior que o meu corpo; deu-me um problemão. Babette, na minha pobre opinião, a partir de sua chegada ao povoado, durante o jantar comemorativo em homenagem à memória do velho pastor, possibilita aos participantes a construção de uma identidade pessoal através de Flachback individualizado. O varal com os peixes secando no tempo, o pão duro amolecido em água, amarra a vida do povoado ao cristianismo primitivo. Assim, a proposta do jantar feito e oferecido por Babette, revive o período da eloquência do poder constituído em torno da multiplicidade semântica, que embala a palavra pecado; o ato em si cheira ao período da bruxaria, da caça aos magos, das heresias direcionadas aos desmandos humanos em nome de Deus. O jantar de Babette aproxima-se dos gestos da redenção humana; redenção que se lança além do cotidiano insosso alimentar, ao sabor do vinho-vida, à cor da Babá ao rum, do Cailles Sancophage. O ato antropofágico da alimentação prazerosa, como no conto “Peru de Natal”, de Mario de Andrade liberta o ser humano de seus ferimentos internos; as mágoas partem dos lábios ressequidos, chegando ao ouvido do outro e, na alegria da satisfação provoca o pedido de perdão. A distante teoria contida no gesto simples e necessário da alimentação, que levaria o ser humano ao desequilíbrio dos sentidos, um caminho condutor aos braços da luxúria, à excitação do corpo e do espirito começa a se fragmentar no jantar de Babette.

A intertextualidade

A intertextualidade existente no filme nos possibilita a compará-lo à fala de Jesus de Nazaré pronunciada durante outro jantar, que desencadeia, também, a reconstrução da maneira de ser, agir, pensar, de uma humanidade pasmada diante de discursos constituídos em nome de um profeta que não os elaborou. Nesse jantar, Jesus entrou.

Esperou que todos os convidados ocupassem seus lugares à mesa. O alimento e o vinho foram colocados diante de todos os olhares, e Jesus narrou duas parábolas que, no mínimo apontam para o significado da vida de cada um de nós nessa longa jornada existencial. O homem de Nazaré falou sobre a posição de cada convidado à mesa e sobre o Filho Pródigo, a possibilidade do eterno retorno (Lc. 14.1ss).

No filme, após o jantar de Babette, os convidados saem de mãos dadas e entorno do poço, cantam e dançam, como crianças que vieram de algum lugar para repovoar o vilarejo.

Os camponeses Gregos, sobre o sol do Mediterrâneo, colhiam os frutos da terra. As moças, filhas do vento e do acalanto, criavam as tortas sobre a brancura de uma pedra vinda do mar navegado por Ulisses. O trigo, movido por dedos hábeis, desenhavam um circulo semelhante ao rosto da lua. E a torta era o alimento oferecido à deusa Artemis, protetora das colheitas, da fertilidade. A L E L U I A!

Vamos à receita dessa semana:

Torta de maça (Tarte Tatin)

Massa: 1 e ½ xícara de farinha de trigo; 1 colher de açúcar; 100 gs de manteiga em cubos bem gelada; 2 colheres de sopa de água gelada.
Recheio: 200 g de açúcar; 100 g de manteiga; 2 kg de maçã; canela a gosto

Modo de fazer:

Massa: Numa tigela coloque a farinha, o sal, o açúcar e misture, coloque a manteiga e vá misturando com as mãos. É importante não deixar a manteiga se desmanchar toda na massa. Coloque as colheres de água uma a uma e veja se precisa colocar mais uma: você tem que conseguir misturar a massa até que se forme uma bola lisa e uniforme. Embrulhe a massa com um filme plástico e coloque na geladeira por 6 horas.

Recheio: Corte as maças descascadas em 4 partes. Coloque-as em uma tigela com água e suco de limão. Em uma frigideira grande, que possa ir ao forno, derreta o açúcar com a manteiga em fogo baixo. Quando estiverem com cor de caramelo, coloque as maças uma ao lado das outras e deixe cozinhar por 20 minutos.
Abra a massa com um rolo em cima de uma superfície enfarinhada. Coloque a massa em cima das maças e leve ao forno aquecido a 180 graus por 20 minutos.
Quando estiver pronta vire a torta em um prato.

Por Adriana Padoan