Ontem, enquanto caminhava pela estrada das primaveras, pensei no desafio descomunal que desgastou a mente humana na busca de um caminho marítimo para as Índias, terras misteriosas, místicas, produtoras de especiarias.
A palavra especiarias surge na língua latina, acomodando o sentido de espécies. A partir dos séculos XIV e XV, principalmente na Europa passou a designar diversos produtos que ampliaram o sabor dos alimentos, ao mesmo tempo em que disfarçavam o gosto dos mantimentos meio estragados, produzidos em uma época sem qualquer recurso de conservação da durabilidade da produção.
A descoberta de um caminho marítimo para Índia foi o resultado de anos e anos de estudos, investimentos, sonhos, tratados náuticos, produção de navios. Parece-me, embora baseado em sentimentos, que a viagem do português Vasco da Gama lá pelos idos de 1497, até as Índias, teve o mesmo valor histórico da viagem da Apollo 11 permitindo que Neil Amstrong colocasse os seus pés no solo lunar.
Enquanto caminhava, observando a coloração das flores e a realidade dos caminhos, lembrei-me do filme “As aventuras de Pi”, e, sentindo o pouso de uma borboleta amarela sobre os meus cabelos, senti que o Pi é a narrativa oposta, isto é, partindo da Índia para as terras variáveis do Canadá. Tanto em Vasco da Gama, Neil Amstrong e Pi, a busca de Deus está presente, o entendimento da vida rasteja o chão, o medo, o mistério, a covardia, o relacionamento, a evolução, estão entre o convés, o amor, o coração, e o salto na distância.
A literatura nasce, cresce, e se desenvolve pela e através da linguagem. Existe um escritor brasileiro chamado Moacyr Schiar, um dos nossos maiores artistas da recente literatura nacional, que em 1981 publicou um livro chamado “Max e os felinos”. Neste livro, Moacyr conta-nos a história de um personagem de nome Max. Ele vive na Alemanha, vê a origem do nazismo, vive uma história de amor arrebatadora, para não ser preso pelos nazistas, foge em um navio com destino ao Brasil.
Max, em sua fuga, é vítima de um naufrágio que o abala psicologicamente de uma forma marcante, passando a conviver com um tigre preso no armário, um jaguar no escaler, e uma onça no topo de um morro imaginário.
A história de Max incluía a presença de uma raça, os judeus, a perseguição ideológica promovida pelos nazistas, a existência de um Deus, e os fantasmas interiores que estão dentro de cada homem: um tigre sobre um armário, um jaguar no escaler e a onça na imaginação. O livro de Moacyr existe dentro de um mar raivoso, um navio desgovernado, um pequeno escaler, e a luta darwiniana pela sobrevivência.
No ano de 2001, andando, correndo, ou refletindo muito sobre a vida, o escritor espanhol Yann Martel, publicou “A vida de Pí”, vendendo mais de 3 milhões de volumes nos Estados Unidos. O livro foi considerado um plágio do nosso consagrado Moacyr Schiar, publicado 20 anos antes. Houve denuncias de plágio, houve criticas e publicações nos jornais e revistas e, no fim a paz chegou numa declaração de Yann Martel: “Li o livro do brasileiro Moacyr Schiar, amei a história de “Max e os felinos”, e confesso que, como sempre acontece na evolução literária, sofri muita influencia da história contada por Moacyr”; graças ao poder do imaginário, a polêmica acabou por aqui.
Nesse momento, em minhas andanças, observei um João-de-Barro construindo um ninho, obra perfeita de arquitetura, para viver um grande amor e gerar filhotes que, com certeza, também amarão com mais paixão e intensidade.
Nesse meu pedaço de tempo, lembrei-me do filme “As aventuras de Pi”, dirigido por Ang Lee, adaptado do livro de Yann Martel, indicado a 11 Oscar.
O filme é um poema criado num balde cheio de temas marcados pela angústia de todas as existências. O início do filme situa-se na Índia, um país como tantos, geograficamente, mas com uma população de 1 bilhão de pessoas, controladas por um sistema político, por leis, por 330 milhões de divindades.
Pi Patei, personagem do filme é filho do dono de um zoológico localizado em Puduccherry, uma cidade que fora organizada e dirigida pela França. O local tem praças, ruas prolongadas, árvores, jardins e muito cheiro da Torre Eiffel.
O pais de Pi vivem na cidade por muito tempo. Os políticos, sentados em suas cadeiras, resolveram, em um dado momento, retirar a subvenção destinada ao zoológico. Uma canetada, uma assinatura que destruiu as condições de sobrevivência de Pi e sua família.
Os pais de Pi resolveram viajar para o Canadá aderindo ao grupo social classificado de imigrantes, ou fugitivos da situação política. Não podemos esquecer que neste contexto e tempo, Pi conheceu e procurou entender a verdade e dúvidas existentes em 3 religiões. Da Índia procurou entender o mito da deusa Shiva que oferece esperança a todos os seres, controla o tempo, a fertilidade e a criação. Mas há furação, terremoto, suicídios, muita gente, fome, ignorância. Será que Shiva, de vez em quando, esquece de agir?
Do cristianismo, procurou entender o amor de Deus, ao entregar o seu filho único à morte, à tortura, à dor, à humilhação para salvar a humanidade.
Dos mulçumanos, queimou a cabeça para entender um Deus que vive para ser adorado.
Quando assistimos a um filme devemos observa-lo em seu todo, como obra de arte, as câmeras colocam a família sobre o mar, o mar vivendo suas realidades de todos os dias, tempestades, revoluções marítimas, destroem o navio, a família, os animais, permitindo, porém que Pi, um tigre chamado Richard Parker, uma hiena, um orangotango, e uma zebra sobrevivessem em uma pequena embarcação. A cadeia evolutiva de Dawin foi retirada do seu meio ambiente, e isolada num pequeno barco, um micro espaço chamado mundo. A ciência e a religião estão convivendo em um pequeno universo guiado pela fé, psicologia, medo e a luta pela sobrevivência.
O oceano assume a sua grandiosidade, não tem princípio e o fim, se existe, é invisível. Em suas águas as estrelas brincam, a lua penteia as suas luzes, os astros refletidos corrigem o seus lugares no espaço. No pequeno barco a deriva, protótipo da vida no mundo, a hiena mata a zebra; ataca o orangotango e o tigre ameaça a todos, inclusive o próprio Pi.
Embora o tigre não seja real, mas um trabalho artístico de computação gráfica, a beleza, o lirismo, o trágico, fundem-se no relacionamento entre Pi e o animal, dominador do poder, mas isento de racionalidade, porém, unidos na luta pela sobrevivência.
A profundidade do filme pode estar no nome do personagem Pi, originado da divisão de uma conferencia pelo seu diâmetro, gerando um número irracional, que não consegue ser expresso; suas casas decimais são infinitas. Essa infinitude que representa a luta pela sobrevivência leva Pi a encontrar uma ilha humana, linda, perigosa, antropófaga. A ciência, as religiões, o valor da existência carregam o personagem a descobrir, mesmo que metaforicamente, os perigos que circundam a vida do homem.
Entre o mar, a lua, o sol, tempestades, o pequeno barco encosta em uma praia habitada. O tigre Richard Parker alonga o corpo nas brancas areias que circulam o mar desaparecendo, lentamente, na floresta que se espalha até a linha do horizonte. Habitantes do local socorrem Pi, que chorando lembra-se da hiena matando a zebra a o orangotango, o tigre matando a Hiena e, os dois, o homem e o tigre domesticado, sobrevivendo num mundo repleto de encantamentos.
No hospital, onde Pi está sendo tratado aparecem dois funcionários de uma companhia de seguros querendo saber de Pi a única notícia que interessa ao organismo social, ou seja, porque o navio afundou, a causa da tragédia; não se interessando, portanto, com a vida, o desespero, o medo, a morte dos tripulantes.
A história contada por Pi não sustenta, não satisfaz a frieza que move os homens de negócios. Este fato leva Pi a rememorar os acontecimentos violentos que aconteceram no espaço asselvajado que marcava o relacionamento humano no interior do navio.
O ar que circulava pelo navio deslocava, de um lado ao outro, o cansaço, o medo, a agressão, a depressão representados pela brutalidade do cozinheiro interpretado por alguns minutos pelo brilhante astro francês Gerard Depardieu.
Esses elementos reais engendram uma história oficial das Aventuras de Pi. O ódio contido na alma do cozinheiro matou um marinheiro, matou a mãe de Pi, movido por desejos oriundos de um ego ordenado pela neurose. Pi, reunindo as forças primitivas que habitam seu interior, misturadas à sua racionalidade, matam o cozinheiro, a vida do homem transformou-se num corpo tombado.
Continuando o meu caminha/passei por um homem simples que/como todos nós,/sonhava com a sua infância. Cruzei o meu caminho com uma mulher grávida,/vida carregando vida/vi um sanhaço, azul como o céu/comendo um mamão maduro/vi as vidas gerando vidas/ e, por isso, lembrei-me de Pi, um menino fantasiado de tigre/um tigre chamado Richard Parker.
Receita
Arroz Catalão
Ingredientes:
4 colheres de sopa de azeite; 1 cebola média; 2 dentes de alho; 1 colher de chá de açafrão; 500 gramas de peito de frango cortados em cubos médios; 250 gramas de linguiça calabresa defumada em rodelas; 1 xícara de cha de vinho seco; e xícaras de chá de arroz; 4 xícaras de chá de água; ½ xícara de chá de ervilha frescas; sal e pimenta do reino a gosto; ½ xícara de chá de salsão picados; 2 colheres de sopa de salsa picada.
Modo de fazer:
Em uma panela, aqueça o azeite e doure a cebola e o alho. Junte o açafrão e misture bem. Acrescente o frango e a linguiça e refogue por três minutos. Adicione o vinho e cozinhe por mais dez minutos. Junte o arroz, a água, o salsão, a ervilha, o sal e a pimenta. Cozinhe até o arroz ficar macio. Deixe alguns minutos na panela tampada. Salpique a salsa e sirva.
Por Adriana Padoan