• Márcio Martins da Silva Costa – São José dos Campos/SP
Pai e filho estavam em um cômodo da casa.
O primeiro, organizando documentos. O segundo, que não contava nem dois anos de vida, mexendo em tudo que atendia a sua inocente curiosidade.
Em certo momento, o pai desce uma caixa de uma prateleira e folheia os cartões profissionais de outrora que lá estavam, os quais julgava que ainda poderiam lhe ser úteis.
De imediato, o novo conteúdo saltou aos olhos do filho. Desviando-se de tudo que antes lhe chamava a atenção, embaralhou seus braços com os do pai, tentando pegar aquele objeto pesado para as suas frágeis mãos.
Preocupado com o filho não se machucar, o pai colocou a caixa no chão e rapidamente aquelas mãozinhas ágeis passaram tirar todos os cartões que estavam lá dentro.
Tirou um primeiro lote, pegou um segundo e foi espalhando tudo pelo piso. E quanto mais espalhava, mais se divertia, passando também a jogar todos para o alto.
Alegria do filho. Desespero do pai.
Este começou, então, a tentar juntar todos novamente, mas só conseguia incentivar ao filho a espalhar mais e mais os papéis. Até que, encantando com a simplicidade do filho em sorrir com situações tão pequenas, entregou-se à brincadeira e juntos fizeram uma verdadeira baderna.
A diversão acabou bem depois com os dois no chão abraçados, rindo sem parar e com cartões espalhados para todos os lados.
——–*——–*——–
Trata-se de uma simples experiência feliz entre pai e filho. No entanto, observado pela perspectiva dos ensinamentos evangélicos, duas memoráveis passagens dos ensinamentos do Cristo podem ser aqui relembradas.
A primeira delas se encontra no Evangelho de Marcos, em seu Capítulo X, entre os versículos 13 e 16. Nesta linda narrativa, crianças foram levadas à presença do Cristo com a intenção de que Ele as tocasse, enquanto os discípulos do Mestre tentavam afastar com palavras ásperas aqueles que as traziam. Discordando daquela atitude dos apóstolos, Jesus lhes disse: “Deixai que venham a mim as criancinhas e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham. – Digo-vos, em verdade, que aquele que não receber o reino de Deus como uma criança, nele não entrará.”. A cena se encerra com Jesus abraçando as crianças e abençoando-as com a imposição das mãos.
A segunda delas pode ser revista no Evangelho de Mateus, 19:16 a 24, quando um mancebo se aproxima do Cristo e lhe pede instruções para conseguir a vida eterna. Jesus lhe orienta a seguir as leis de Moisés e este afirma já fazê-lo. O Nazareno então lhe diz para dar tudo que tem em prol dos pobres e volte para segui-Lo. Este, porém, declina em função de suas generosas posses. O Mestre, assim, conclui junto aos discípulos, dizendo “Digo-vos em verdade que bem difícil é que um rico entre no reino dos céus. – Ainda uma vez vos digo: É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino dos céus”.
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulos VIII e XVI, Kardec desdobra as duas passagens, esclarecendo-nos a cerca destes ensinamentos.[1]
Dotada de uma simplicidade e de uma humildade sincera, as crianças exemplificam o modelo de pureza de coração desejável ao homem de bem. Na maioria de nós, as memórias mais tenras da infância se perdem no emaranhado de fatos e eventos que vão se embaralhando na mente adulta, resultando, muitas vezes, em apenas fragmentos dos momentos simples e felizes que vivenciamos na infância. Enquanto os mais velhos costumam buscar elementos laboriosos para entorpecer a sua felicidade, a criança abre um sorriso sincero e profundo com as pequenas coisas que descobrem e vivenciam à sua frente. De uma caixa surge um brinquedo divertido. De um tombo; um sorriso desproporcional. De uma folha de papel ao alto; uma alegria e uma energia contagiante. E de um sorriso verdadeiro de um adulto; a confiança e o aconchego. No alvorecer da infância, humildade e sinceridade caminham juntas não deixando espaço para o egoísmo e o orgulho.
Kardec ainda nos traz a mensagem de um Espírito protetor, intitulada “A verdadeira propriedade”, que nos ensina que todos os bens da Terra pertencem a Deus e não aos homens. Só temos aquilo que podemos levar deste mundo, que são os nossos valores morais e os conhecimentos adquiridos. Nada mais, além disso, cruzará a fronteira do túmulo e nos servirá de apoio quando chegarmos ao mundo dos Espíritos.
Logo, que possamos vivenciar as narrativas de nossas vidas como as crianças o fazem em sua tenra simplicidade. Procuremo-nos alegrar todos os dias, mantendo o bom ânimo e desprovidos do apego as coisas materiais que nos circundam. A matéria nada mais é do que o instrumento de aprendizado do qual fazemos uso nesta escola azul chamada Terra. Como resultado, o amor sincero em nossos corações, refletidos em sorrisos puros em nossos rostos é que irão reservar para nós os verdadeiros tesouros que estão nos céus: os tesouros da instrução e do amor.
(1) A. Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, 131a. Brasília (DF): Federação Espírita Brasileira, 2013.