Clarice Lispector (1920-1977) pode ser considerada uma pesquisadora do enigma humano. Os versos de Clarice Lispector extraídos de “Dá-me a tua mão” tem uma força fascinante: “Entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio”.
A lírica simples e pura, que soa como um convite à descoberta da magnética narradora, pela qual este silêncio foi uma forja da sua obra, que brotava não tanto da inspiração, vista com suspeição, e também não de uma particular virtude intelectual, mas do suor da fronte, como pão ganho através da leitura atenta dos acontecimentos mais simples, mas também dos não acontecimentos, da vida quotidiana.
Ao longo de um florescente caminho artístico, Clarice Lispector não se limitou a narrar histórias, mas preferia delinear aquilo que o seu coração sentia, reelaborando depois o vivido com uma escrita rica de metáforas, sem cair na moda imperante nos salões literários, mas atenta a deixar que o leitor, fintado, encontrasse um espaço de construção mediante a livre interpretação dos escritos, muitas vezes desprovidos de trama.
Comparada aos grandes nomes da literatura mundial, como James Joyce e Virginia Woolf, Clarice Lispector é considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX. Nascida a 10 de dezembro de 1920 na Ucrânia ocidental, dizia, ironicamente, que nunca tinha posto os pés naquela terra, visto que quando a deixou era tão pequena, que a levaram ao colo.
Diplomada em Direito, interesse depressa abandonado para dedicar-se totalmente à literatura, ainda muito jovem conheceu a celebridade com um genial monólogo introspectivo, “Perto do coração selvagem”, um dos seus romances mais conhecidos, acolhido com entusiasmo pelos críticos devido à requintada técnica de escrita, inédita no panorama literário do país, que privilegiava uma narrativa mais marcada pelo realismo social. O seu estilo fragmentário e intimista impeliu a dramaturga francesa Hélène Cixous a dizer que a literatura brasileira pode ser dividida em dois períodos distintos, antes e depois de Clarice Lispector.
Vê-se logo desde o primeiro romance, em que a autora projeta na vida da protagonista a sua evanescência, transbordante de imagens oníricas, assim como noutras obras, de Laços de família à obra-prima Água viva, de A hora da estrela a Um sopro de vida, considerado o testamento espiritual; publicado no ano seguinte à sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1977.
Depressa intui que para fazer literatura não é preciso isolar-se, mas o rame-rame quotidiano pode tornar-se um motor para a escrita. Da convivência entre o ideal e o ferial nasceu uma narrativa genuína, sofrida e frágil, muitas vezes simplesmente essencial.
Em 1969, ao entrevistar Pablo Neruda (1904-1973), que dois anos depois receberá o Prêmio Nobel, Lispector dirige-lhe uma pergunta que parece endereçada mais a si mesma: “Que estado precede a tua criação, a angústia ou a graça?”. Uma interrogação que, perseguindo-a, a incita a sondar com cada vez maior profundidade a alma humana.
As personagens, frequentemente como alter-ego, estão envolvidas em traços etéreos e vivem em lugares imaginários, em que a psicologia e a metafísica disputam um papel de protagonista. Consciente da complexidade dos sentimentos humanos e da energia necessária para os desafiar, considerava a escrita um verdadeiro mistério, um enigma que a acompanhará toda a vida, marcada também por feridas existenciais, mas nunca fechada à surpresa da epifania acolhida sempre com paixão.
Sabe-se, todavia, que a revelação só é possível a quantos permanecem abertos à alteridade dir-se-ia à estranheza, para ela verdadeiro aguilhão de criatividade. Palavras que ainda hoje ressoam como forte apelo a quem, exausto pela superficialidade e pela mediocridade da indiferença, busca um vislumbre de beleza, em si próprio, no mundo , no outro.
Prof. José Pereira da Silva