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segunda-feira 23 dezembro 2024
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As hipóteses para explicar os votos de Bolsonaro que as pesquisas não previram

A votação acima do previsto pelos institutos de pesquisas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros candidatos associados ao bolsonarismo gerou surpresa e debates.

Na véspera do primeiro turno, as pesquisas Datafolha e Ipec mostravam uma vantagem de cerca de 14 pontos percentuais de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Bolsonaro.

O Datafolha estimou em 36% o número de votos válidos de Bolsonaro, e o Ipec, em 37%, o que daria, em uma conta simples, em torno de 42 milhões dos 118,2 milhões de votos válidos computados no último domingo, 2, pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Mas o atual presidente teve, na realidade, 51 milhões de votos válidos, ou seja, 43,2%, acima da margem de erro das pesquisas, de dois pontos percentuais.

No rescaldo do primeiro turno, especialistas levantam hipóteses que – isoladamente ou em conjunto – podem ajudar a explicar as discrepâncias.

Ao mesmo tempo, representantes dos institutos de pesquisa dizem que as sondagens captam o momento e não são uma previsão de futuro.

Censo defasado

Retrato mais fiel da composição da população brasileira, o Censo está desatualizado: os dados consolidados mais recentes são de 2010. A coleta de dados atualizados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) deveria ter acontecido em 2020, mas foi adiada duas vezes – por conta da pandemia e por falta de verbas – e só começou em agosto de 2022.

E qual o impacto eleitoral disso? É que os institutos conduzem suas pesquisas de opinião com base em amostras de recortes da população – de renda, idade, classe social ou religião, por exemplo.

Se essas amostras estatísticas forem embasadas em conjuntos populacionais desatualizados, isso pode impactar o resultado das pesquisas eleitorais, segundo estatísticos.

Os institutos de pesquisa, é claro, têm ciência das limitações impostas pelo Censo e usam dados adicionais para calibrar suas amostragens – como os da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (Pnad) ou do Tribunal Superior Eleitoral.

Mesmo assim, analistas veem a possibilidade de certos grupos teoricamente mais alinhados a Bolsonaro estarem subestimados. Os evangélicos, por exemplo, eram 22% no Censo de 2010, mas pesquisas do Datafolha já sinalizavam que esse público havia subido para 31% da população em 2019.

Mobilização entre evangélicos

A campanha entre o eleitorado evangélico na reta final, por sinal, pode ter feito diferença em favor de Bolsonaro, avaliou a brasilianista Amy Erica Smith, da Universidade Estadual de Iowa.

“É possível que a campanha dentro das igrejas ou nas redes sociais direcionada aos fiéis evangélicos tenha tido um papel relevante nos resultados”, disse à BBC News Brasil a professora, que é autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God (Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, em tradução literal).

Ela agregou que é comum que nos dias que antecedem o pleito ou no próprio domingo de votação, líderes religiosos defendam candidatos em sermões ou redes sociais.

“Com isso, pode haver mudanças de última hora em favor do candidato apoiado pelas igrejas”, disse. “Alguns chamam isso de clientelismo, mas não é bem por aí, porque não há necessariamente compra de votos. O que acontece é que muitas pessoas ainda estão indecisas e acabam tomando a decisão no último dia, influenciadas pelas igrejas”.

Outra possibilidade para esse grupo não ter sido plenamente captado pelos institutos de opinião é que “Bolsonaro em vários momentos pregou certa desconfiança em relação às pesquisas. Isso pode ter feito com que alguns de seus eleitores não respondessem aos questionários e pesquisadores”, avalia Smith.

Além disso, o público evangélico foi alvo frequente de desinformação e fake news nestas eleições: reportagem da BBC News Brasil mostra que filhos e aliados de Bolsonaro difundiram amplamente falsas notícias associando Lula à perseguição religiosa.

“As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado”, disse à BBC News Brasil, antes das eleições, Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em checagem de notícias falsas com teor religioso.

‘Voto envergonhado’

Um fenômeno ainda a ser plenamente compreendido nestas eleições é o do chamado “voto envergonhado” ou “amedrontado” – ou seja, de eleitores que deixariam de expressar sua preferência às sondagens eleitorais por “vergonha” ou “medo”.

Esse fenômeno se baseia em uma teoria de comunicação de massa conhecida como “espiral do silêncio”, segundo a qual o indivíduo tende a omitir sua opinião quando ela contraria a opinião dominante, por medo de isolamento social.

Nos meses anteriores à votação, o cientista político Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas), levantou a hipótese de haver voto envergonhado em Bolsonaro entre camadas do eleitorado em que Luiz Inácio Lula da Silva se manteve majoritário, por exemplo nas camadas de baixa renda e escolaridade.

Lavareda disse na ocasião que discrepâncias entre resultados de pesquisas de intenção de voto presenciais (quando as pessoas podem se sentir mais inibidas a falar diante de pessoas conhecidas) e por telefone poderiam sugerir uma subnotificação de votos bolsonaristas.

O cientista político Felipe Nunes, do instituto de pesquisas Quaest, disse que, na verdade, seus levantamentos haviam identificado o contrário: um possível voto envergonhado em Lula, explicável pelo medo de sofrer violência ou por ser associado aos escândalos de corrupção atribuídos ao PT.

Outros institutos de pesquisa, como Ipec e Datafolha, disseram não ter identificado evidências de subnotificação, mas já adiantavam que só depois das eleições seria possível ter certeza se a “espiral do silêncio” de fato aconteceria ou não.

Voto útil cirista?

Outro fator que vai ser debatido na campanha do segundo turno é o destino dos votos dos candidatos atrás de Bolsonaro e Lula nas pesquisas, em especial Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT).

A campanha de Ciro, em particular, desidratou na reta final do primeiro turno. O candidato, que se apresentava como a principal alternativa para a polarização no país, acabou com 3,5% dos votos válidos (3 pontos percentuais a menos do que nas pesquisas), atrás de Tebet, com 6,34%.

Houve muito esforço da militância petista para tentar migrar votos de Ciro para Lula ainda no primeiro turno. Na avaliação de Felipe Nunes, do Quaest, porém, tudo indica que Bolsonaro é quem se beneficiou dessa desidratação cirista ainda no primeiro turno. “O voto útil que a gente observou na reta final do (eleitor do) Ciro foi todo na direção de Bolsonaro”, disse ele em entrevista ao UOL.

O outro lado dessa equação, porém, é que, caso esse movimento a favor de Bolsonaro já tenha de fato acontecido, o saldo restante de votos em Ciro provavelmente tem mais chances de migrar para Lula no segundo turno, na avaliação de Nunes.

Mas, para o analista Bruno Carazza, autor de Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro, ainda é cedo para cravar para onde foram os votos de Ciro, uma vez que Lula pode ter herdado parte desses votos no primeiro turno.

No Twitter, Filipe Campante, professor na Universidade Johns Hopkins (EUA), também acha possível que o voto útil possa já ter beneficiado o próprio Lula. “Impressionante como muita gente está assumindo que o voto útil não funcionou, quando é perfeitamente possível que tenha sido o que salvou Lula e o manteve à frente”, escreveu ele no Twitter.

Engajamento em Estados antipetistas

Um dos destaques do primeiro turno foi a votação expressiva do ex-ministro bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) a governador em São Paulo. Ele estava em segundo lugar nas pesquisas de opinião, mas acabou com mais votos válidos (42,3% a 35,7%) do que Fernando Haddad (PT), com quem vai disputar o segundo turno.
Uma possibilidade é que Tarcísio tenha recebido voto útil de parte dos eleitores do atual governador, Rodrigo Garcia (PSDB).

Mas seu desempenho sinaliza algo também para a disputa nacional: que Bolsonaro e aliados se beneficiaram ainda mais do que o previsto do sentimento antipetista em Estados onde Lula mantém alta rejeição, como nos da região Sudeste, que abriga o maior colégio eleitoral do país.

Em São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Bolsonaro ganhou com folga de Lula no primeiro turno – à frente por cerca de 7, 10 e 12 pontos percentuais, respectivamente.

Nessa região, Lula só venceu em Minas Gerais (por 5 pontos percentuais), apesar de as pesquisas de opinião terem previsto uma vantagem de Lula no Sudeste – o Datafolha previa vantagem de 8 pontos percentuais do candidato petista na região.

De modo geral, o interior do país – tanto do Sudeste quanto do Sul e do Centro-Oeste – tem sido negligenciado por acadêmicos, analistas e imprensa, avalia Carazza.

Dessa forma, deixa-se de compreender um conjunto de valores e anseios diferentes dos que predominam nos grandes centros urbanos, bem como como de representá-los corretamente do ponto de vista estatístico, aponta o analista.

“E o Bolsonaro se comunica muito bem nessa região, algo que ficou explícito na votação (expressiva de aliados do presidente) para Câmara e Senado”.
Na Câmara, por exemplo, o PL, partido de Bolsonaro, terá a maior bancada.

Alta abstenção

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontou que a abstenção no último domingo foi de 20,9%, ou seja, 32 milhões de brasileiros aptos a votar não compareceram às urnas.
É uma porcentagem parecida à de 2018 (de 20,3%), mas ainda assim a maior das últimas duas décadas em pleitos presidenciais.

Mesmo antes do dia 2, analistas apontavam que a abstenção tendia a prejudicar Lula, porque se manifesta mais entre camadas onde o petista tem mais intenções de voto – por exemplo, entre o eleitorado de baixa renda e baixa escolaridade.

Dificuldade em captar o voto conservador?

Outro tema que tem despertado debates é quanto a se os institutos de pesquisa estão conseguindo captar com precisão a opinião de determinados públicos, como o conservador.

“Não é uma surpresa que teremos segundo turno, mas é uma surpresa que será um segundo turno competitivo”, disse à BBC News Brasil o brasilianista Brian Winter.

“Está claro que o Brasil, assim como os Estados Unidos, tem um eleitor conservador que não aparece de forma adequada nas pesquisas.

Como na Itália, Suécia, Estados Unidos e Reino Unido, há uma população conservadora muito energizada que a mídia e outros consistentemente subestimam.”
Nos EUA, em 2020, lembra ele, as pesquisas eleitorais davam ao democrata Joe Biden uma vantagem muito mais ampla sobre Donald Trump do que mostrou o resultado nas urnas.

“Essa sensação de sentar em frente à TV, observar a divulgação de resultados e ficar surpreso com o número de votos conservadores é um déjà vu que passamos dez vezes ao longo dos últimos seis anos, desde a eleição de Trump [em 2016]”, diz Winter.

Ele ressalta que os próprios conservadores podem ser mais reativos a dar entrevistas aos institutos de pesquisa, porque muitos acham que o sistema está contra eles.

Agora, é preciso entender o quanto esse fenômeno pode estar se repetindo entre o público conservador no Brasil, avalia Bruno Carazza. Alguns afirmaram no Twitter terem “boicotado” os institutos de pesquisa (o que, vale destacar, podem ser apenas casos isolados, sem impacto na qualidade dos dados coletados).
Felipe Nunes, do Quaest, rebateu as críticas às pesquisas de opinião.

“A gente passou a campanha inteira dizendo que pesquisa não é prognóstico (do que vai acontecer), é diagnóstico, (mas) chega a eleição, as pessoas esquecem disso e cobram das pesquisas algo que elas são incapazes de fazer, que é adivinhar o que o eleitor vai fazer”, disse ele em entrevista ao UOL nesta segunda-feira.

O papel da pesquisa, agregou ele, é “nos ajudar a entender os movimentos que estão por vir”, disse ele, destacando que a votação de Lula esteve dentro da margem de erro prevista pelas pesquisas e que a de Bolsonaro pode ter se beneficiado de movimentos como o voto cirista.

Na semana anterior à votação, Luciana Chong, diretora do Datafolha, disse também ao UOL que a serventia da pesquisa eleitoral é “trazer várias fotografias” dos momentos que antecedem a eleição.