Talvez precisamos voltar a arte da lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes. Os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.
Os ritmos das atividades tornaram-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento.
Passamos a viver num open space sem paredes nem margem, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfigurados, num continuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.
Deveríamos, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Diz Milan Kundera: “ Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo”.
O grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de onipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.
Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transmite num galope ruidoso, veemente e efêmero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno.
Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nós temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado.
Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais. Ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga no quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário, escolhe mais vezes convive com a vida silenciosa; anota nos pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias , o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.
Aprender a arte da lentidão
out 26, 2018Bruno FonsecaFé e RazãoComentários desativados em Aprender a arte da lentidãoLike
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