Ninguém, até os dias do nosso presente, conseguiu definir se o nascimento de Hélio Fonseca Morotti, membro de destaque na República da Língua Grande, nascido na cidade de Itanhandu, Minas Gerais, ocorreu de madrugada, ao entardecer, ao anoitecer, ou a meia noite.
O fato ocorrido, duas horas após o parto, um detalhe dos mais importantes para se entender o jogo político do Brasil, ficou na cabeça do povo daquela cidade e região. A história é a seguinte: a mãe de Hélio colocou, por instantes imprecisos, a mamadeira do recém-nascido, cheia até a boca, sobre um criado mudo que, há muito tempo, ficava ao lado da cama. De repente, enquanto ela trocava seu filho, ouviu ruídos fraquinhos, arrastadinhos, ao lado do leito. Era uma criança de uns três anos, mais ou menos; sorridente, dona de um rosto misterioso que, num gesto rápido, “lavajatou”, verbo derivado da palavra “Lava-Jato”, a mamadeira do recém-nascido, saindo em disparada.
Paulo, um dos líderes da República da Língua Grande, segurou o esfomeadinho na porta da sala. O menino não teve medo, não chorou, nem se desculpou… Apenas, mesmo sem vontade, devolveu a mamadeira. O nome dessa criança era José Dirceu.
Da cidade de Itanhandu, a família Morotti veio tentar a vida em Taubaté. O pai, Orlando Morotti, montou um bar na Ponte do Correia, início da antiga “Cavarucanguera”, hoje Avenida Faria Lima. Vendia pão, doce, bala, refrigerantes, bebidas, embutidos, aperitivos, salgadinhos, e os famosos sorvetes de fabricação própria. Trabalhava duro, pesado, destemido, alegre… Tinha uma família para sustentar, uma família com nove filhos.
Hélio estudou na Escola Jacques Félix, do temido professor Rui, na Rua Visconde do Rio Branco onde, na atualidade, funciona o Pós- Graduação da Universidade de Taubaté. Nessa fase de sua vida, tempo bom, era chamado de “borracheiro”. Derrubar a borracha umas quinze vezes por aula, para justificar sua envergadura de corpo, na tentativa de enxergar sombras da perna da professora. De noite, na solidão do quarto, sonhava com um mundo impossível, com conquistas impossíveis, namoros sangrados, casamentos realizados por trinta e cinco padres.
Na escola fundamental, Colégio Estadual, conheceu a professora dona Anita, esposa do professor Alcyer Paes de Barros, diretor do Sesi. Hélio era o representante de sala. Mário Celso, de saudosa memória, era presidente do Diretório. Um dia, criando coragem sem limites, coragem estudada, planejada, pediu à dona Anita um emprego no Sesi. Duas semanas se passaram, tempos arrastados, lentos, demorados. No final do mês, tendo quatorze anos de idade, entrou como contínuo na rede de ensino mantida pelo Sesi. Trabalhava durante o dia e estudava à noite.
Todos os dias, em seu trabalho, ia à agência da Pássaro Marrom retirar os documentos enviados ao Sesi de Taubaté, por outras unidades de São Paulo. Recebia os documentos, fazia a conferência, assinava a retirada. Montava na bicicleta, pedalava sem pressa, com destino à barbearia do Orlando. Entrava, brincava, ria, lia a Gazeta Esportiva e, tranquilamente, retornava ao trabalho.
Dona Lourdinha, chefe do almoxarifado do Sesi, preocupada com o físico do nosso herói, fase de desenvolvimento, dava-lhe cinco copos de Toddy por dia. Esse fato, coisa simples, teve uma larga influência em sua vida. Ao namorar, pela primeira vez, uma menina linda, do Colégio Estadual, onde também fazia o colegial, enfrentou problemas freudianos.
Nas palavras de Paulo, Fefeu, Barba, Carlos da Banca de Revista da Praça; uma noite de lua cheia, no momento que os vampiros voam para o desconhecido, Hélio ficou com a namorada no paredão dos Ferrari. Beijos. Amassos. Apertos. Frases curtas. A menina, no desespero, perguntou-lhe…
– O que mais você quer?
– Toddy, um copo com Toddy, respondeu-lhe Hélio Morotti.
Ainda no Sesi, trabalhando ao lado de Romeu Garcia e, por insistência desse grande educador, cursou Pedagogia, assumindo o cargo de Auxiliar de Administração mantendo, por meio dessa função, contato com todos os professores da rede.
Em 1967, o Marechal Arthur da Costa e Silva e o deputado Pedro Aleixo assumem a presidência do Brasil. Baltar estava lá. Zé Keti, depois de seis cervejas, dá à luz a música “Máscara Negra”; no corcovado, encostado em uma pedra, um estudante, cercado pelo Exército, pensa em suicídio; Leon Hirzsman termina o filme Garota de Ipanema e as salas de projeção superlotam; no Terceiro Festival de Música da Record, diante dos olhos atentos dos militares, Edu Lobo e Capinam recebem o 1º prêmio com a música “Ponteio”; em terceiro, com muita honra, “Roda Viva” de Chico Buarque, sacode a plateia. No teatro, na frente de olhos espantados, a peça de teatro “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos, arranca suor, medo, sangue, de um público emudecido.
Em Taubaté, numa tarde de sol, o time do Taubaté entra em campo. Os garotos jogadores pisam no gramado. Hélio está ao lado de Egídio. Rojões, bombas, bandeirinhas coloridas, gritos, corre-corre.
A bola faz um arco no céu; repica duas vezes na lateral; Egídio a domina, dança na frente de três adversários. Passa pelo meio das pernas de Tonhão; dá um passe a Hélio que, tendo futebol próprio, está na área adversária; a bola amortece o seu peito; o giro de corpo desloca uns dois, o chute faz um arco-íris de doze cores, entrando no canto direito e inflando a rede.
A República da Língua Grande entra em delírio. Barba, mais afoito, grita por diretas já.
Décio de Almeida, sentando na varanda de sua casa, lembra-se de uma noite, com ou sem estrelas, que ao lado do padre Zé Luis, contemplam tudo o que foi feito na Vila das Graças.
A Escola, o teatro, casas para os mais pobres, a luta de todos os dias.
Dos olhos do padre, no canto dos olhos, uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto e, na sua simplicidade, pediu a Deus que tudo tenha continuidade…
Na próxima semana, os deputados da República da Língua Grande, estarão terminando as aventuras de Hélio e as memórias de Décio de Almeida e o padre Zé Luis.
Por Prof. Carlos Roberto Rodrigues
05/08/2017