O mais comum é agradecer o que nos foi dado.E não nos faltam motivos de gratidão.Há,é claro,imensas coisas que dependem do nosso esforço e engenho,coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo,contrariando nisso o que seria previsível,ou que nos surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo.Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas vidas são um receptáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso,a própria existência,e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de que somos protegidos,cuidados,acolhidos e amados.Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: “sou uma obra dos outros”.Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá depois.Somos o resultado de uma cadeia insuperável de encontros, de gestos,boas vontades,sementeiras,afagos,afetos.Colhemos inspiração e sentido de vida que não são nossos,mas que se inclinam pacientemente para nós,iluminando-nos,fundando-nos na confiança.Esse movimento ,sabemo-lo bem,não tem preço,nem se compra em parte alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência indelével faz-se sentir a vida inteira.O seu lugar não consegue ser preenchido,mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o tipo com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa espécie de falha geológica que nos morde.
Hoje,porém,pensei na importância do que não nos foi dado.Isto é tão verdadeiro.Mas exige uma transformação radical de nossa atitude interior.Torna-se adulto por dentro não é propriamente um parto imediato ou indolor.No entanto,enquanto não agradecemos a Deus,à vida ou aos outros o que não nos deram,parece que a nossa prece permanece incompleta.
Pode facilmente continuar pela vida adentro a nutrir o ressentimento pelo que nos foi dado,a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados,a prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que nos foi dado como oportunidade,ainda que misterioso,ainda que ao inverso,para entabular um caminho de aprofundamento… e de ressurreição.Foi assim que numa das horas mais sombrias do séc.XX;desde o interior de um campo de concentração,a escritora Etty Hillesum conseguiu ,por exemplo,protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade.No seu diário deixou escrito:
“A grandeza do ser humano,a sua verdadeira riqueza,não está naquilo que se vê,mas naquilo que traz no coração.A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade,nem no papel que nela desempenha,nem no seu êxito social.Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro.Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo.A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior,se apaga.E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.”