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segunda-feira 23 dezembro 2024
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A carne e o sangue: a história do triângulo amoroso de Dom Pedro

Livro de Mary del Priore entrelaça as histórias de Pedro I, de Leopoldina e da marquesa de Santos para revelar os bastidores do triângulo amoroso mais famoso do país
Sentada em uma cadeira desconfortável, uma gorda e descuidada senhora de olhos muito azuis sofreu durante 5 horas as dores do parto. Era a 7ª vez que Leopoldina passava por situação semelhante – das quais haviam vingado somente 4 mulheres. Pedro, porém, veio ao mundo saudável, com 47 cm, às 2 e meia da manhã do dia 2 de dezembro de 1825. O pai, o imperador do Brasil, conseguiu chegar a tempo de assistir ao parto.

Para presenciar o nascimento de seu primeiro varão, Pedro I saíra correndo da casa da amante, Domitila, onde fora encontrado consolando a moça que sentia suas primeiras dores da contração. Cinco dias após apresentar o futuro Pedro 2º àcorte, o imperador voltou à casa da favorita para conhecer seu outro rebento, que acabara de nascer. E que levou o nome de Pedro de Alcântara Brasileiro.

O famoso triângulo amoroso formado pelo imperador Pedro I, a imperatriz Leopoldina e a marquesa de Santos é o tema de A Carne e o Sangue, da historiadora Mary del Priore, colunista da AH.

Ela fez algo inédito, como pode ser notado na descrição acima: cruzou a correspondência de Leopoldina, Pedro e Domitila com informações e manuscritos das pessoas que cercavam a família real e assistiam ao drama todo. E, com isso, entrelaçou as histórias e penetrou nos mais profundos sentimentos dos envolvidos. Saem daí informações preciosas sobre a personalidade dos 3 principais personagens – e, claro, sobre a história do país durante o Primeiro Reinado.

Numa viagem à Bahia para sufocar um princípio de rebelião, por exemplo, o imperador embarcou com as duas. Seu caso era tão notório, que o embarque virou piada pronta: “Levava a mulher para disfarçar a amante”.

A princesa infeliz
Às 17h do dia 5 de novembro de 1817, a corte do Rio de Janeiro assistiu a uma festa como poucas, com duas horas de foguetório e multidões se acotovelando. Era a recepção para a arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria, filha do soberano do Sacro-Império Romano-Germânico e imperador da Áustria Francisco I, que chegava ao país. Vinha consolidar seu casamento com o príncipe herdeiro Pedro, feito por procuração em sua terra natal.
Era uma moça gorducha de 20 anos, mãos rechonchudas, nem feia nem bonita. “Na qualidade de princesa de uma das maiores casas reais da Europa, era, sobretudo, um peão no jogo das alianças entre potências”, diz Mary.
Desde 1806, o sonho de dom João 6º, rei de Portugal e do Brasil, era unir seu filho à Casa de Habsburgo, “campeã na luta contra a França revolucionária e napoleônica, senhora de 39 estados”, segundo a historiadora.
“Leopoldina casara-se com dom Pedro imbuída de seu papel real. Para ela, felicidade era o cumprimento estrito de suas obrigações, fazendo tudo o que seu esposo desejasse”, afirma Mary. “Mas, no fundo, embalava-a o que seus contemporâneos chamavam de modernismo: o sentimento romântico que levava seus adeptos a acreditar que o coração sempre vencia. Esse foi seu mal.”

O príncipe garanhão
Quando casou-se, dom Pedro tinha 19 anos. E um já vasto histórico de vagabundagens amorosas, todas amplamente comentadas pela população. “O assédio que fazia às mulheres era assunto corrente”, escreve Mary no livro. “Andava pelas ruas à cata de presas. Não poucas vezes, apeara do cavalo para levantar a cortina de uma cadeirinha que passava carregada no ombro de escravos. Ele não conhecia limites nem diante da família nem diante do marido da mulher desejada.”
Na ocasião da chegada da futura esposa, ele andava enrabichado com uma dançarina francesa, que engravidara. A corte inquietou-se, pois o contrato de casamento já estava assinado. O casamento, portanto, não começou bem – e, com o tempo, só piorou. Os casos extraconjugais de Pedro aconteciam um após o outro, assim como os filhos bastardos. E, apesar disso, ele não dava folga a Leopoldina – que, sempre grávida (teve 9 gestações em 9 anos de casamento), vivia recolhida e em repouso.
Sobre seus modos, um funcionário que acompanhou a austríaca ao Brasil, o barão de Eschwege, anotou: “Por falar no príncipe herdeiro, posto que não seja destituído de inteligência natural, é falho de educação formal.
Foi criado entre cavalos, e a princesa cedo ou tarde perceberá que ele não é capaz de coexistir em harmonia”.

A amante sedutora
A paulista Domitila de Castro Canto e Melo entra na história por ocasião da viagem de dom Pedro a São Paulo, em 14 de agosto de 1822. Pedro já rompera com Portugal ao anunciar que ficaria no Brasil. Tropas portuguesas começaram revoltas em algumas províncias.
Dom Pedro, ainda sem o título de imperador, que conquistaria em 12 de outubro, viajou para São Paulo para dar jeito em um racha na junta que governava a província. Enquanto apaziguava os ânimos, encontrou tempo para a morena forte de 25 anos. Domitila era encantadora.
Sedutora, inteligente, independente como as mulheres não costumavam ser à época – separada de seu primeiro marido, de quem levara uma facada e com o qual tivera dois filhos. Conheceu Pedro quando fez parte de uma comitiva à corte, antes de sua ida a São Paulo.
Em sua vasta correspondência com ele, nunca fez menção à imperatriz, de quem se tornou dama de honra, num episódio que escandalizou a corte no Rio, para onde se mudou e levou a família. Ela recebia dinheiro para dar pitacos no governo e era bastante influente.

O triângulo amoroso
Pedro e Domitila viveram uma louca paixão. “O affair extravasou a alcova e refletiu-se na vida política e familiar do príncipe, bem como na imagem que dele se fazia dentro e fora do país”, afirma Mary. Ele a chamava de Titília. E assinava as cartas como o Demonão ou Fogo Foguinho.
Conteúdo erótico não era incomum – Pedro desenhava pênis eretos e ejaculando. Frequentava os saraus e jantares na casa da amante, que por sua vez tinha acesso irrestrito ao Paço. Além disso, Pedro reconheceu sua filha Isabel com Domitila como oficial e colocou a bastarda para viver ao lado de seus rebentos. Leopoldina, humilhada, só deixava a mágoa transparecer nas correspondências.
A um amigo desabafou: “Mulheres indignas fazendo de Pompadour e Maintenon!! E pior ainda, porque não têm nenhuma educação… e os outros têm que silenciar”. “A comédia era encenada em público”, diz Mary. “A única coisa não visível, silenciada, sufocada, era o sofrimento da imperatriz.”
Leopoldina enfim demonstrou seus sentimentos após a morte do pai da rival. Pedro não saiu do lado de Domitila e pagou as despesas do funeral. Ela fez as malas do imperador e disse-lhe que fosse viver com a favorita. Os biógrafos divergem sobre uma agressão na frente do cozinheiro, com um chute que poderia tê-la matado. “Há registros de que ele teria se destemperado”, diz Mary.

O final trágico
A imperatriz Leopoldina também rebelou-se momentos antes de morrer. Amargurada e grávida mais uma vez, viu o marido viajar para o sul em novembro de 1826. Lá, o exército brasileiro brigava com Buenos Aires pela posse da Cisplatina, atual Uruguai. A mulher estava com a saúde fragilizada – em poucos dias, abortou e morreu. Não sem antes despejar sobre Domitila toda sua raiva e rancor.
“Delirava, amaldiçoando a amante do marido. Atribuía-lhe poderes de feitiçaria. Reagia com gritos ao vê-la. Os sentimentos da submissa imperatriz, contidos por tanto tempo, explodiam”, diz Mary. Depois da morte, a imperatriz foi transformada pela população em uma espécie de heroína. Era louvada nos jornais. Houve um beija-mão da morta já quase em estado de decomposição.
As razões de sua tristeza e de seu mal eram conhecidas. Domitila transformou-se na vilã número 1 do país. Sua casa foi apedrejada, e ela, difamada. Pior: se ela não abandonasse Pedro, ele não conseguiria nunca mais um bom casamento, que reforçaria a monarquia. O imperador amava Titília, mas amava ainda mais sua posição.

Nem tão liberal assim
Leopoldina costuma ser tratada como fundamental para a Independência do Brasil. A Carne e o Sangue revela que não foi bem assim. “Leopoldina mostra-se aferrada ao Antigo Regime e apavorada diante de uma revolução sangrenta que lhe cortasse a cabeça”, diz a autora.

“Ela não esconde esse temor nas cartas ao pai.” Numa delas, Leopoldina chama a população de maldita canalha. Ela só começou a mudar seu comportamento no fim de 1821. “Minha impressão é que ela não quis arriscar a herança ou a coroa dos filhos voltando para a Europa”, diz Mary.

“São os fatos que a levam a se posicionar em favor da Independência. Leopoldina temia uma guerra civil e reage em função disso.” Em uma de suas cartas ao marido, escreve: “O Brasil será em vossas mãos um grande país, o Brasil vos quer para seu monarca”. No entanto, segundo Mary, enquanto dom Pedro declarava o Brasil independente, a austríaca escrevia para o pai assinando sua filha e vassala mais fiel, acusando o marido de aderir às novidades e lamentando o futuro negro. “Se houve outras cartas em que ela se mostre uma estrategista ou executiva do movimento independentista, eu desconheço”, diz a autora.