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quarta-feira 25 dezembro 2024
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120 Anos de documentário

Mesmo que essa palavra ainda não existisse, os irmãos Lumiere enviaram seus cinegrafistas a países dos cinco continentes. Autêntico prodígio do século XIX positivista, o catálogo dos filmes Lumiere vislumbrou espectadores com as primeiras imagens em movimento do mundo inteiro, mas somente alguns anos depois é que o filme de enredo, a ficção, passou a ser a principal atração do espetáculo cinematográfico. Hoje, contar a história dos mais dos 120 anos de documentário é descrever a face escondida da história do cinema.
Quando o longa metragem de ficção tomou conta das salas de cinema, o documentário virou mero complemento de programa. Além, dessa subordinação aos olhos do público e dos produtores, o documentário foi padronizado. O modelo que vingou foi o do Pateau Journal, criado na França, em 1908. Todos os países imitaram os cinejornais europeus e, com isso, os cinegrafistas perderam liberdade e criatividade. Antes, os filmes Lumiere implicavam numa série de opções – além do assunto, era preciso escolher o ângulo e o lugar da câmera e decidir o momento certo para filmar. Em apenas um minuto, mesmo com uma única tomada de maneira embrionária, os primeiros documentários mostram que o filme exige uma visão de quem está por trás da câmera. Durante a Revolução Mexicana, os cinegrafistas foram descobrindo a montagem, para reconstruir a cronologia dos acontecimentos, e para manter certo equilíbrio entre as partes do conflito. Tudo isso acabou com os cinejornais, principalmente quando a Primeira Guerra mundial transformou as telas em veículo de propaganda. Na concorrência entre os cinejornais, os importados acabaram tendo mais atrativos do que os nacionais e os norte-americanos acabaram monopolizando os mercados.
A rotina dos cinejornais virou uma espécie de ritual do poder, conforme dizia Paulo Emílio Salles Gomes; inaugurações oficiais, festas da alta sociedade, concurso de miss, um pouco de esporte… No entanto, ainda na época do cinema mudo, o documentário foi uma expressão pessoal nas mãos dos cineastas Flaherty e Dzigavertov. O americano Robert Flaherty estabeleceu as bases do filme antropológico e poético. Nanuk, o esquimó e o homem de Aran foram suas principais fitas. Flaherty convivia com a comunidade que pretendia registrar durante vários meses. Ele filmava sem roteiro pré-concebido, mas ia estruturando aos poucos uma narração baseada na observação direta dos costumes locais. Flaherty não desistia de encenar novamente seus filmes até o ajuste correto das idéias. Ele procurava sensibilizar o espectador, provocando sua identificação com o esquimó Nanuk ou com o pescador da ilha de Aran, envolvidos numa luta permanente com a natureza.
A filmagem era um momento decisivo para Robert Flaherty Em compensação, para o russo Dzigavertov, o fundamental era a montagem. Em plena efervescência da Revolução Russa, Dzigavertov inventou o que ele chamava de cinema olho. Em base nas imagens filmadas na rua , ele compunha caleidoscópio da vida cotidiana e da sociedade em movimento, a vertigem da transformação social: poesia das atividades humanas eram sugeridas pela montagem e o ritmo das imagens e os efeitos especiais. Dzigavertov estava sintonizado com as vanguardas poéticas, plásticas e literárias de sua época. A mensagem política não era preocupação de seus filmes da década de 1920 e, por isso mesmo, o stalinismo resolveu rapidamente enquadrá-lo no documentário tradicional.
A guerra civil espanhola e a segunda Guerra Mundial aumentaram a dose de propaganda nas telas. O nazismo contou com uma cineasta competente, Leni Rifenstahl que transformou os comícios de Hitler e as olimpíadas de Berlim num espetáculo carregado de ideologia. A esquerda encontrou o seu grande cineasta militante no holandês Joris Yvens, sempre disposto a viajar para os países onde estava acontecendo alguma coisa importante. Além do engajamento político, Yvens tinha uma relação muito estreita com as vanguardas intelectuais, o que refletia no seu estilo primoroso. Joris yvens filmou na e Espanha durante a Guerra Civil, em colaboração com o romancista Ernest Heminguey.
O documentário social surgiu na Grã Bretanha, apesar do clima de exaltação patriótica vigente nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. O teórico do documentário britânico foi John Glierson, que participou da criação do Instituto Nacional de Cinema do Canadá. Em Londres, foi no Departamento Cinematográfico do Correio, onde Glierson promoveu um novo tipo de filme preocupado em deslindar questões sociais e inventar uma linguagem diferente. O brasileiro Alberto Cavalcanti, com experiência anterior na França, foi um desses inovadores do documentário social inglês. Cavalcanti era mestre em matéria de montagem sonora, criando um contraponto rítmico com as imagens ou um acompanhamento musical baseado apenas na mixagem e reelaboração dos ruídos.
A contribuição da França ao documentário contemporâneo se deu em duas direções opostas: por um lado os franceses aprimoraram o comentário com requintes inéditos. Alan Rennè encomendou ao escritor Reimond Queneau um comentário em versos alexandrinos para um filme institucional sobre o Poliestireno. Chris Maker levou o documentário à sofisticação do ensaio literário. Além disso, a França teve um papel decisivo no surgimento do chamado cinema verdade ou cinema direto. Seus iniciadores foram o antropólogo e cineasta John Rushe e o sociólogo Edgard Morin, graças às novas câmeras de 16mm com som sincronizado, ao gravador portátil Nagra e a película ultra-sensível que dispensava luzes e refletores. O documentário passou por uma autêntica revolução foi com o som direto, gravando ao mesmo tempo em que a imagem ,que o documentário entrou para valer na era do cinema falado. Foi como se a palavra das pessoas filmadas pelos documentaristas tivesse sido finalmente liberada. Na França, no Canadá, nos EUA e mesmo no Brasil o cinema verdade foi um descobrimento marcante da década 1960.
O Brasil, Cuba e Argentina entraram na História do documentário depois dos anos 60. O pessoal do cinema Novo e os cineastas cubanos fizeram o seu aprendizado no documentário. O argentino Fernando Solanas filmou uma trilogia de quatro horas “La Hora de Los Cornos”, verdadeiro manifesto da geração revolucionária de 1968.
O brasileiro Eduardo Coutinho fez de “Cabra marcado para morrer” uma reflexão emocionante sobre o drama de uma família camponesa, vítima da ditadura militar, graças à montagem de material de arquivo e as entrevistas.
O documentário não se limita mais a descrever o presente e ajuda também a destrinchar o passado. Marcele Ofuss, na França e Richard Dundeau, na Suíça, são dois documentaristas particularmente empenhados em desmistificar ou em esclarecer a história recente. A tristeza e a piedade de Marcele Ofuss mudou a opinião que a França tinha de sua atitude durante a ocupação alemã.
Na época de Flaherty e Dzigavertov, os documentaristas criativos propunham uma alternativa à rotina dos cinejornais. Hoje em dia, cineastas como Coutinho, Ofuss e Dundeau fizeram do documentário uma opção alternativa em relação à televisão. A lição de mais de 120 anos de documentário é essa: não basta uma ideia apenas, mas é preciso colocar
as mãos na câmera e filmar cada instante da vida nos seus mais diversos aspectos.
Hoje, o documentário tem sido tomado por algumas características próprias, devido a complexidade de situações que envolvem deslocamento de pessoas que fogem de conflitos étnicos, guerra civil e mesmo confronto entre grupos radicais religiosos, entre outras mazelas sociais vividas em alguma parte do mundo. Esses confrontos, muitas vezes não permitem a presença constante de um repórter ou um cineasta no local do acontecimento. Então, paradoxalmente, surge à oportunidade do uso de imagens de celulares ou câmeras de fotografia e vídeo, com registros feitos pelas próprias pessoas que são envolvidas diretamente nesses conflitos. Esses registros são valiosos, e na hora de editar, propiciam aos documentaristas da atualidade uma visão mais crítica sobre os fatos, dando mais realismo às cenas, apontando as dificuldades enfrentadas por pessoas que deixam tudo, partindo em busca de mundo novo e desconhecido, com valores e cultura muito diferentes dos seus.